Felipe Prestes
Após a repercussão negativa entre organizações de defesa dos povos
indígenas de uma portaria publicada nesta semana pela Advocacia-Geral da
União (AGU), Luis Inácio Adams, ministro chefe da AGU, conversou, por
telefone com o Sul21, nesta quinta-feira (19). A
portaria, baseada em decisão do STF sobre a Reserva Raposa do Sol, em
Roraima, define medidas polêmicas a serem seguidas por toda a
Administração Pública Federal, como a proibição de ampliação de área
demarcada de reservas.
Movimentos sociais também afirmam que a decisão do STF não tinha
repercussão geral, por isto não poderiam ser adotadas como tal e
questionam uma das dezenove condicionantes referentes à demarcação de
terras, estabelecidas pela portaria, que pode atentar contra a consulta
prévia aos povos indígenas para ações nas reservas. Na entrevista, Adams
garantiu que a consulta se mantém para questões econômicas e explicou
porque adotou a decisão do STF e também falou de todos os pontos que
envolvem a polêmica.
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Sul21 – Por que a decisão da AGU de publicar essa portaria, antecipando a decisão do STF?
Luís Inácio Adams – Não se trata de antecipar, é
preciso tomar uma decisão. A questão que estava presente é que o STF, ao
julgar aquela situação de Raposo, indicou a necessidade de observar
algumas condicionantes gerais, que não tinham nem a ver com o caso de
Raposa (do Sol). O tema de Raposa era a demarcação contínua da reserva.
Para decidir sobre esse tema, certamente o STF não precisaria entrar em
nenhuma das outras condicionantes que foram apresentadas. Quando o STF
faz uma condicionante, está indicando que a decisão da Corte é no
sentido de que todos os procedimentos que estão em violação daquela
condicionante são inconstitucionais. Ele formalmente não adotou como
regra geral porque o processo, quando julgado, não era de repercussão
geral. Mas eu sei, e é sabido, que se trata de uma decisão de cunho
geral da Corte. E a União não entrou com embargos, não impugnou aquela
decisão, nem por meio da Funai nem de nenhum outro órgão. Como o
processo ainda não tinha sido julgado e é preciso produzir segurança
jurídica, resolvi orientar, como é da minha competência, todos os órgãos
jurídicos da União a proceder de acordo com aquelas condicionantes
decididas pelo Supremo, reproduzidas literalmente.
Sul21 – O artigo 3º da portaria fala de revisar os
procedimentos de demarcação em curso e até mesmo de anteriores, já
concluídos. Isso também não traz insegurança?
Luis Inácio Adams – A decisão do Supremo já existia e
os procedimentos concluídos em respeito àquela decisão são passíveis de
revisão. O Estado pode rever seus atos em até cinco anos. Há um prazo
para eventual revisão de procedimentos. E os procedimentos em curso, não
concluídos, também são passíveis de revisão. A Funai está estudando a
implementação desta portaria e pode, se for o caso, evitar a reabertura
de questões já resolvidas. Mas isso, em última análise, depende de
provocação da Funai ou de outros órgãos.
Sul21 – Parlamentares enviaram um documento para a AGU,
pedindo a adoção das condicionantes do STF. Essa pressão influenciou na
decisão?
Luis Inácio Adams – Houve várias solicitações de
adoção da decisão do STF. A gente não se pautou por essa pressão. Tanto
que, se tivéssemos nos pautado, lá em 2009 já teria saído uma
orientação. Eu assumi no final de 2009, mas resolvi, por cautela,
aguardar e ver a evolução das questões. Nós já tínhamos um parecer sobre
o assunto, mas aguardamos. Então, não é a pressão que resolve: o que há
é a preocupação de produzir um processo administrativo que se mostre
estável, que não seja passível de revisão, que não mude todo o tempo por
força de decisões judiciais.
Sul21 – Movimentos sociais argumentam que a própria AGU teria
pedido para o STF dar repercussão geral ao tema e o Supremo negou.
Isto, de fato, ocorreu?
Luis Inácio Adams – Eu peguei o processo na fase
final e o pedido de repercussão antecede o julgamento. O importante é
que, no momento do julgamento, o plenário deliberou por adoção de
condicionante que se aplicam para além do caso concreto. Resolveu adotar
uma lista de condicionantes que representam marco constitucional no
tratamento das questões de demarcação e de administração nas áreas
indígenas. Isto deve ser observado, porque não adianta nada você começar
uma ação na primeira instância, chegar ao Supremo e derrubarem tudo
porque não observou parâmetros que ele tinha adotado.
Sul21 – O senhor falou em uma entrevista ao Estadão que a
portaria não afeta a convenção da OIT que determina a consulta prévia
aos povos indígenas. Não ficou muito claro porque não afeta.
Luis Inácio Adams – A consulta prévia existe para as
questões de interesse das comunidades indígenas, isto está não apenas
na OIT, mas na Constituição, no que se refere à exploração econômica. O
que o Supremo deliberou foi que havendo a possibilidade de perecimento
de dois valores fundamentais – de um lado, a defesa nacional, de outro o
interesse indígena – deve prevalecer a defesa nacional. Ou seja, nós
não estamos criando uma soberania dentro de uma soberania. Eu tenho
dentro do Brasil o direito garantido a comunidades etnicamente
definidas, que têm algumas prerrogativas garantidas. Agora, existem
situações em que outro valor pode se sobrepor. Se há uma exploração
indevida de ouro, por exemplo, o Exército está autorizado,
independentemente de consulta, a intervir. Ou se estiver se escondendo
em uma reserva um criminoso procurado.
Sul21 – Mas tem a questão de riquezas naturais e de construção de estradas.
Luis Inácio Adams – É no sentido de preservação, não
necessariamente de exploração. A formulação pode sugerir esta ideia,
mas o que o Supremo discutiu a preservação dos interesses nacionais. A
exploração econômica vai seguir o que está no artigo 231 da
Constituição: precisa de autorização do Congresso e consulta à
comunidade. Digamos que a própria comunidade resolva explorar
terras-raras. Isto é inconstitucional. A União está autorizada a entrar e
impedir esta prática. Os recursos naturais são preservados. É este o
objetivo do dispositivo. Agora, o que foi reproduzido na portaria não
foi a minha interpretação, mas o que o Supremo deliberou. Estou dizendo o
alcance que entendemos que tem o dispositivo. Não posso reescrevê-la
para adaptar ao meio objetivo, mas no parecer busco orientar as unidades
para evitar eventuais pontos de conflito.
Sul21 – Outro ponto que foi polêmico é a vedação de ampliação de reservas já demarcadas. Isto talvez não traga mais conflitos?
Luis Inácio Adams – O que está vedado é a ampliação
por revisão de demarcação. A própria portaria reconhece que pode haver
ampliação em caso de nulidade absoluta da demarcação, com uma nova
revisão. Por outro lado, a portaria não impede que o Estado faça uma
desapropriação por interesse social para a reserva. A diferença é que na
desapropriação por interesse social eu indenizo tudo, inclusive a
terra. Isto é importante porque grande parte da disputa é em torno da
indenização. Às vezes tem pessoas que ficam 90 anos em uma terra e,
quando vão ser retiradas, recebem apenas pelas benfeitorias. É evidente
que as pessoas vão resistir. E a Constituição veda indenizar pela terra
(para demarcações). Este é um ponto de conflito, a impossibilidade de
indenizar pelo imóvel.
Sul21 – Isto vai facilitar, talvez…
Luis Inácio Adams – É isto. A limitação também
facilita o processo de desapropriação em favor da comunidade e das
pessoas também. O problema da demarcação é esse, as pessoas são
indenizadas apenas pelas benfeitorias.
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