As 79 famílias da comunidade Kaiowá de Nhu Verá, no município de Dourados, tem até meados de novembro para saírem de seu tekoha
- o território sagrado. Uma decisão da Justiça Federal em Dourados
autoriza a desocupação e reintegração de posse de 26 hectares de terra
ocupados pelos indígenas. Foi autorizado o uso de força policial, caso
os indígenas resolvam permanecer no território.
Segundo
a decisão, os Kaiowá deverão desocupar a área no prazo de trinta dias, a
partir da data da intimação dos indígenas, e receberão multa diária no
valor de 100 reais no caso de nova ocupação.
Grudados
à Reserva Indígena de Dourados, ladeados por plantações de soja e
eucalipto e cortados por uma estrada, os Kaiowá tiveram suas terras
arrendadas e griladas ao longo do século vinte, conforme relatam. Em
maio de 2011, retomaram 26 hectares de seu território tradicional.
"Quando
a gente retomou, o fazendeiro chegou e perguntou: o que aconteceu aqui?
Algum acidente? Aí explicamos que ali era nosso, que eles já tinham
usado muito a terra. Era a retomada", relata a liderança indígena de Nhu
Verá, Shatalim Graito.
"Ele
ficou me procurando, queria negociar. Eu não negociei. Dinheiro acaba.
Eu quero terra pra minha comunidade. A terra não é do fazendeiro, é
nossa", expõe. "É nossa, do tempo do meu avó, do meu bisavô. Meus
parentes moraram aqui e morreram aqui. Por isso fizemos isso, voltamos
pra cá, e vamos ficar aqui", explica.
Sobre
a área indígena destes Kaiowá incide a Fazenda Curral de Arame. Seus
proprietários, Achilles e Lenita Decian, ajuizaram ação possessória na
Justiça Federal. No dia 16 de outubro, o juíz José Luiz Paludetto
deferiu o pedido de liminar dos dois fazendeiros e expediu mandado de
desocupação e reintegração de posse da área.
FORÇA POLICIAL
Houve audiência de tentativa de conciliação, "a qual restou infrutífera", segundo afirma o despacho.
No
caso do descumprimento da desocupação, o mandado deverá ser cumprido
"moderadamente, com as cautelas que o caso exige", indica o documento.
Mas completa: "em caso de resistência, fica autorizado desde já o uso de
força policial".
Para
Shatalim, o arrendamento das terras em acordos mal explicados e a
sequente grilagem das terras foram responsáveis pela perda do terrítorio
original. "Começou assim, no tempo em que alguém alugou para fazendeiro
que morava aqui perto. Alugou pra dar de comer. Só que aí depois eles
fecharam, fizeram cerca. Deu uma vaca, um porco, e depois disso fizeram
documento. Pessoal antigo, que não tem estudo, fez isso assim. Foi
enganado. Fazendeiro tirou esse nosso pedaço, essa nossa parte da
terra", aponta.
FUNAI
O
juíz refuta a alegação dos indígenas de se tratar de terras
tradicionais porque, "a despeito do argumento, não trouxeram [os
indígenas] nenhum documento que comprovasse" que Nhu Verá é território
tradicionalmente ocupado pelos índios. Como a área não foi reconhecida
como indígena pela União, a Justiça não teria elementos para assim o
fazê-lo.
Toda
a decisão do juíz é baseada no trabalho inconcluso do órgão
governamental. "Enquanto não iniciado e concluído o trabalho de
identificação e demarcação, as terras (...) não podem ser classificadas
como (...) indígenas".
Segundo
a decisão, a Funai afirmou que "seria constituído Grupo Técnico ainda
este ano para o estudo de identificação das terras tradicionalmente
ocupadas por indígenas, mas ainda não há nos autos qualquer notícia
concreta quanto a este fato".
CONFINAMENTO
No
tekoha Nhu Verá, as famílias plantam mandioca, abacaxi, banana, milho,
manga, pokã. "Sem veneno. Tudo bonito. Gosto de deixar herança. Todo ano
dá muita pokã. A gente não dá nem conta de comer", diz Shatalim. "Nós
precisamos de espaço. Hoje já não é assim e por isso os índios brigam
demais", referindo-se à vida de confinamento nas reservas indígenas.
"Índio
gosta o mato. Quando eu tenho que ir na cidade resolver alguma coisa,
eu chego lá, me incomodo. Fico dez minutos e quero ir embora. Eu gosto é
do mato. Fico o maior alegre quando tô no mato. Eu chamo tudo
bicharada. Por isso quero ficar aqui", aponta.
A COBRA
Shatalim
e os Kaiowá tem certeza de que ficarão na terra, e conta a história da
cobra para nos explicar o porquê. "Depois da retomada, uma cobra chegou
na minha barraca. Uma jaracara amarela, grossa. De noitezinha. Eu
tomando chimarrão e ela apareceu no fundo. Apontei o fogo e vi que era
muito grande". Shatalim conta que matou a cobra a pancadas - e que isto
significou não só eliminar a ameaça do animal peçonhento, mas também a
vitória na reconquista da terra. "O sinal era muito brabo, muito feio.
Depois, eu nunca mais vi cobra aqui depois, nem minhoca. A cobra
representa que eu venci ele. Porque eu peguei ele. Se ela [a cobra] me
pagasse, ele [o fazendeiro] ia me vencer. Se ela pegasse no meu pé, na
minha mão, ele ia me vencer. Aí eu já ia saber que o fazendeiro ia me
vencer. Mas como eu bati, eu matei eu venci dele". E termina: "aqui eles
não entram. Minha reza é forte. Aqui quem manda é o maracá".
Ruy Sposati,
de Campo Grande (MS)
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