Nos últimos meses, os conflitos fundiários surgidos pela disputa de
terras entre indígenas e não-indígenas deram ensejo a uma discussão não
só acerca das regras jurídicas que regulam o procedimento de demarcação
de terra indígena, mas também ao modo pelo qual essas regras são
aplicadas.
É interessante notar que o debate público em relação à
demarcação de terra indígena é desenvolvido quase que exclusivamente em
torno de questiúnculas jurídicas. Ou estamos às voltas com propostas de
alteração do texto constitucional ou estamos às voltas com novas
redações de leis e decretos. Tais alterações sempre apresentadas como
soluções milagrosas, como panaceias para problemas complexos e sem a
devida explicitação sobre exatamente quais os valores que estamos
assegurando e quais os valores que estamos mitigando. Tudo salpicado por
uma visão dicotômica e irreconciliável com defesas pela
constitucionalidade das alterações diante de acusações pela
inconstitucionalidade dessas mesmas propostas. Talvez seja o momento de
passarmos a discutir o tema não apenas, e tampouco principalmente, sob a
ótica do direito, mas também sob o viés da avaliação de uma política
pública de desenvolvimento para o Brasil. Ora, afinal de contas qual
desenvolvimento é desejado por nós enquanto sociedade? Em que medida
devemos compatibilizar uma ideia de desenvolvimento voltado para o
crescimento do PIB com um desenvolvimento que também acolha os
diferentes grupos sociais?
O debate, na prática, parece
circunscrito aos limites da própria lógica jurídica. Nesse sentido, uma
das principais críticas reside no fato de que o arcabouço legal e as
instituições envolvidas nessa aplicação (conquanto Estados e Municípios
possam ser consultados, o andamento do processo fica a cargo do Poder
Executivo Federal e sua principal figura é a FUNAI) propiciariam uma
condução interessada do processo, ou seja, a FUNAI atuaria de modo
parcial para reconhecer direitos indígenas. A parcialidade alegada
traria como conseqüência fragilidades na análise e nos critérios
adotados para a caracterização de uma área como indígena gerando, dessa
forma, não só disputas judiciais como também ameaças de parte a parte.
A
PEC 215 entra em pauta justamente como uma tentativa de responder a
deficiências do atual modelo de demarcação. Visa aprimorar o sistema de
demarcação ao propor a alteração dos artigos 49 e 231 atribuindo, assim,
ao Congresso Nacional o poder de aprovar as demarcações de terras
indígenas.
Essa solução de pronto mostrou-se controversa, pois
foram trazidos fundamentos jurídicos para embasar a tese de
inconstitucionalidade da PEC. Basicamente dois argumentos foram
apresentados.
Em primeiro lugar, haveria um comprometimento da harmonia
entre os Poderes pela inclusão da necessidade de aprovação do Congresso
Nacional do trabalho técnico conduzido pelo Executivo. Em segundo lugar,
a Constituição estabeleceria um direito originário à terra para os
indígenas. Isso significaria dizer que a função do Estado cinge-se à
declaração de que determinada área é terra indígena, portanto, essa
declaração não estaria sujeita a qualquer juízo de conveniência e
oportunidade que poderia vir a ser exercido pelo Congresso. O direito à
terra já estaria constituído antes mesmo de qualquer verificação por
parte dos órgãos estatais. Em outras palavras, se a terra for indígena, o
que é identificado por um processo técnico, não se abre a possibilidade
de não haver demarcação.
Para além da discussão sobre aqueles
que terão competência para decidir sobre a demarcação de terras
indígenas, há uma segunda questão que vem sendo negligenciada pelo
debate público e que passa pelo modelo de desenvolvimento que queremos
seguir. Sem um claro projeto de Nação qualquer discussão referente a
alterações legislativas ou constitucionais não apenas perde o sentido
como também escamoteia as razões de fundo traduzindo em uma linguagem
jurídica o que deveria ser posto em uma linguagem política.
Se
quisermos lançar luzes sobre esse tema, temos que reconhecer que a
disputa ocorre em torno de dois modelos de desenvolvimento. De um lado,
temos um modelo cujo principal parâmetro para qualificação de seu êxito é
o crescimento econômico. E, a partir dessa visão, o agronegócio ganha
extrema relevância, pois vem sendo um setor importante para a economia
brasileira em razão de sua crescente participação no PIB. De outro lado,
temos um modelo que se preocupa não só com o PIB, mas também com a
inclusão de minorias. Não podemos nos esquecer há outros valores
relevantes, inclusive garantidos constitucionalmente, sobre a terra que
vão além da sua função de gerar renda como, por exemplo, a possibilidade
de algumas comunidades desenvolverem sua cultura e suas tradições.
Sem
que se explicite a relação entre a engenharia institucional e os
modelos de desenvolvimento que se pretende alcançar, o debate acerca da
demarcação de terra indígena é infrutífero. Isso não significa
descartar, sem as devidas considerações, a PEC 215 ou qualquer outra
alteração que se deseje fazer no sistema de demarcação de terra
indígena, mas sim de chamar a atenção para o fato de que
independentemente da posição adotada não se versa simplesmente sobre
questões técnicas ou formais, pois, na verdade, alterações no sistema de
demarcação de terra indígena podem trazer conseqüências profundas na
forma como nos entendemos como nação e no modo como desenvolveremos o
país. Podemos ser a favor, ou contra, de um projeto nacional para
concessão de menos terras para os indígenas e mais terras para o
agronegócio, mas isso deve estar claro na discussão pública e não
permeado com filigranas jurídicas que mais se prestam a erigir
justificativas tangenciais ou que pretendem tergiversar do ponto
principal em jogo.
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