quarta-feira, 2 de julho de 2014

O valor da terra e o desenvolvimento que queremos

Nos últimos meses, os conflitos fundiários surgidos pela disputa de terras entre indígenas e não-indígenas deram ensejo a uma discussão não só acerca das regras jurídicas que regulam o procedimento de demarcação de terra indígena, mas também ao modo pelo qual essas regras são aplicadas.
É interessante notar que o debate público em relação à demarcação de terra indígena é desenvolvido quase que exclusivamente em torno de questiúnculas jurídicas. Ou estamos às voltas com propostas de alteração do texto constitucional ou estamos às voltas com novas redações de leis e decretos. Tais alterações sempre apresentadas como soluções milagrosas, como panaceias para problemas complexos e sem a devida explicitação sobre exatamente quais os valores que estamos assegurando e quais os valores que estamos mitigando. Tudo salpicado por uma visão dicotômica e irreconciliável com defesas pela constitucionalidade das alterações diante de acusações pela inconstitucionalidade dessas mesmas propostas. Talvez seja o momento de passarmos a discutir o tema não apenas, e tampouco principalmente, sob a ótica do direito, mas também sob o viés da avaliação de uma política pública de desenvolvimento para o Brasil. Ora, afinal de contas qual desenvolvimento é desejado por nós enquanto sociedade? Em que medida devemos compatibilizar uma ideia de desenvolvimento voltado para o crescimento do PIB com um desenvolvimento que também acolha os diferentes grupos sociais?
O debate, na prática, parece circunscrito aos limites da própria lógica jurídica. Nesse sentido, uma das principais críticas reside no fato de que o arcabouço legal e as instituições envolvidas nessa aplicação (conquanto Estados e Municípios possam ser consultados, o andamento do processo fica a cargo do Poder Executivo Federal e sua principal figura é a FUNAI) propiciariam uma condução interessada do processo, ou seja, a FUNAI atuaria de modo parcial para reconhecer direitos indígenas. A parcialidade alegada traria como conseqüência fragilidades na análise e nos critérios adotados para a caracterização de uma área como indígena gerando, dessa forma, não só disputas judiciais como também ameaças de parte a parte.
A PEC 215 entra em pauta justamente como uma tentativa de responder a deficiências do atual modelo de demarcação. Visa aprimorar o sistema de demarcação ao propor a alteração dos artigos 49 e 231 atribuindo, assim, ao Congresso Nacional o poder de aprovar as demarcações de terras indígenas.
Essa solução de pronto mostrou-se controversa, pois foram trazidos fundamentos jurídicos para embasar a tese de inconstitucionalidade da PEC. Basicamente dois argumentos foram apresentados. 


Em primeiro lugar, haveria um comprometimento da harmonia entre os Poderes pela inclusão da necessidade de aprovação do Congresso Nacional do trabalho técnico conduzido pelo Executivo. Em segundo lugar, a Constituição estabeleceria um direito originário à terra para os indígenas. Isso significaria dizer que a função do Estado cinge-se à declaração de que determinada área é terra indígena, portanto, essa declaração não estaria sujeita a qualquer juízo de conveniência e oportunidade que poderia vir a ser exercido pelo Congresso. O direito à terra já estaria constituído antes mesmo de qualquer verificação por parte dos órgãos estatais. Em outras palavras, se a terra for indígena, o que é identificado por um processo técnico, não se abre a possibilidade de não haver demarcação.
Para além da discussão sobre aqueles que terão competência para decidir sobre a demarcação de terras indígenas, há uma segunda questão que vem sendo negligenciada pelo debate público e que passa pelo modelo de desenvolvimento que queremos seguir. Sem um claro projeto de Nação qualquer discussão referente a alterações legislativas ou constitucionais não apenas perde o sentido como também escamoteia as razões de fundo traduzindo em uma linguagem jurídica o que deveria ser posto em uma linguagem política.
Se quisermos lançar luzes sobre esse tema, temos que reconhecer que a disputa ocorre em torno de dois modelos de desenvolvimento. De um lado, temos um modelo cujo principal parâmetro para qualificação de seu êxito é o crescimento econômico. E, a partir dessa visão, o agronegócio ganha extrema relevância, pois vem sendo um setor importante para a economia brasileira em razão de sua crescente participação no PIB. De outro lado, temos um modelo que se preocupa não só com o PIB, mas também com a inclusão de minorias. Não podemos nos esquecer há outros valores relevantes, inclusive garantidos constitucionalmente, sobre a terra que vão além da sua função de gerar renda como, por exemplo, a possibilidade de algumas comunidades desenvolverem sua cultura e suas tradições.
Sem que se explicite a relação entre a engenharia institucional e os modelos de desenvolvimento que se pretende alcançar, o debate acerca da demarcação de terra indígena é infrutífero. Isso não significa descartar, sem as devidas considerações, a PEC 215 ou qualquer outra alteração que se deseje fazer no sistema de demarcação de terra indígena, mas sim de chamar a atenção para o fato de que independentemente da posição adotada não se versa simplesmente sobre questões técnicas ou formais, pois, na verdade, alterações no sistema de demarcação de terra indígena podem trazer conseqüências profundas na forma como nos entendemos como nação e no modo como desenvolveremos o país. Podemos ser a favor, ou contra, de um projeto nacional para concessão de menos terras para os indígenas e mais terras para o agronegócio, mas isso deve estar claro na discussão pública e não permeado com filigranas jurídicas que mais se prestam a erigir justificativas tangenciais ou que pretendem tergiversar do ponto principal em jogo. 
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