quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ruralistas bloqueiam ratificação e Brasil passa a ter papel secundário no Protocolo de Nagoya

O Protocolo de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Decorrentes de sua Utilização foi aprovado em 2010, em Nagoya (Japão), durante a 10ª Conferência das Partes da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), e é um instrumento internacional que visa implementar a Convenção da Diversidade Biológica (CDB).
Na semana passada, o texto do Protocolo conseguiu obter o número mínimo de ratificações para que entre em vigor. Cinquenta e um países já ratificaram o Protocolo de Nagoya, que passa a valer em 12 de outubro de 2014 (90 dias após a 50ª ratificação). Devido à pressão do agronegócio sobre o Congresso Nacional, o Brasil não o ratificou e participará apenas como observador (sem direito a voto) da próxima reunião dos países signatários do Protocolo, (chamada de “conferência das partes”), que ocorrerá na Coréia entre 13 e 17 de outubro deste ano.
O país mais rico do mundo em biodiversidade- estima-se que o Brasil detenha cerca de 20% de todas as espécies vegetais e animais existentes no planeta – terá um papel meramente secundário na definição de questões estratégicas do regime internacional de acesso e repartição dos benefícios derivados da utilização da biodiversidade.
A entrada em vigor do Protocolo de Nagoya, que ocorrerá em outubro, foi amplamente comemorada pelos países ricos em biodiversidade, que, em sua grande maioria, ratificaram o instrumento, fundamental para a conservação e uso sustentável da biodiversidade. Entre os que ratificaram o Protocolo figuram países em desenvolvimento e ricos em biodiversidade como Indonésia, Índia, México, África do Sul, Madagascar, Quênia, Egito, Síria, Guatemala, Peru, Honduras, Panamá, Uruguai, Vietnã, Hungria, Micronésia, Butão, Vanuatu, Uganda, Seychelles, Mongólia, Laos, Guiné Bissau, Moçambique, Costa do Marfim, Ilhas Maurício, Ilhas Fiji

 (Veja aqui a lista completa dos signatários do Protocolo de Nagoya). 

 
Entre os países desenvolvidos, a Noruega, a Dinamarca, a Espanha, e a Suíça já o ratificaram. O Parlamento da União Européia aprovou, em abril deste ano, o Regulamento (nº 511/2014) que autoriza a entrada em vigor do Protocolo de Nagoya nos países europeus, bem como estabelece normas para a sua implementação.
Leia aqui a íntegra do Protocolo de Nagoya.
Argumento do agronegócio não tem fundamento legal
O Brasil, entretanto, ficou de fora das comemorações pois o Congresso Nacional não ratificou o Protocolo devido às pressões de setores do agronegócio que contra ele se posicionaram. O argumento utilizado, e sem qualquer fundamento legal, foi o de que o Protocolo criaria dificuldades para que as instituições brasileiras acessassem recursos genéticos da soja (originária da China) para fins de pesquisa e melhoramento genético vegetal. Ocorre que as condições para o acesso aos recursos genéticos da soja serão determinadas pela legislação chinesa, e não pelo Protocolo de Nagoya.
Diretamente vinculado à Convenção da Diversidade Biológica (CDB), o Protocolo de Nagoya é um instrumento novo que visa promover a implementação do terceiro objetivo da CDB: a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos (e dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, detidos por comunidades indígenas e tradicionais)
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB) é o principal instrumento internacional destinado a promover a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. É também um dos instrumentos internacionais mais amplamente aceitos e ratificados em todo o mundo: 192 países e a União Européia são parte da CDB. Todos os países membros das Nações Unidas – com exceção dos EUA, Andorra e Sudão do Sul- integram a CDB. Entre os princípios consagrados pela convenção, está a soberania dos Estados sobre os seus recursos naturais. Assim, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional (dos países de origem de tais recursos). Este princípio prevaleceu sobre o conceito (anterior à CDB) de que tais recursos constituiriam “patrimônio da humanidade”.
De acordo com a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), qualquer empresa ou instituição científica interessada em acessar recursos genéticos para realizar pesquisa científica ou desenvolver novos produtos deve pedir autorização prévia ao país de origem de tais recursos, assim como repartir eventuais benefícios (monetários e não monetários) com os países de origem de tais recursos. Alguns, como os Estados Unidos, pleiteavam o livre acesso a tais recursos, o que contrariava os interesses dos países ricos em biodiversidade, como o Brasil.
A preocupação dos países megadiversos em assegurar a sua soberania sobre os recursos genéticos aumentou principalmente nos anos 1990, com o avanço das patentes e outros direitos de propriedade intelectual sobre produtos ou processos desenvolvidos com base no acesso a recursos genéticos. Se, por um lado, o acesso à biodiversidade era livre (por ser considerada “patrimônio da humanidade”), o acesso aos produtos e processos desenvolvidos com base na biodiversidade - fármacos, cosméticos, alimentos, etc- se tornou cada vez mais restrito em virtude da concessão de patentes e outros direitos de propriedade intelectual sobre eles.

Acesso aos recursos genéticos está sujeito a consentimento prévio

Nos termos da CDB, o acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao “consentimento prévio e fundamentado” do país de origem, e os benefícios derivados de sua utilização também devem ser repartidos de forma “justa e eqüitativa” com o país de origem. Ainda de acordo com a convenção, as condições para o acesso aos recursos genéticos devem ser estabelecidas através de termos mutuamente acordados entre os países provedores e usuários de tais recursos. Outro aspecto importante da CDB é a proteção conferida aos conhecimentos, inovações e práticas de comunidades indígenas e locais – seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, etc – relevantes e úteis à conservação da diversidade biológica. Tais comunidades têm, ao longo de gerações, selecionado e manejado espécies com propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas e também têm direitos à repartição justa e equitativa dos benefícios gerados pela utilização de seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
O Protocolo de Nagoya complementa e dá maior efetividade e concretude às normas da CDB que asseguram a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização da biodiversidade. É essencialmente um acordo pelo qual os países (usuários e provedores de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados) se comprometem a garantir o respeito às legislações nacionais de acesso e repartição de benefícios. Ou seja, para que o Protocolo tenha efetividade, é necessário que os países adotem as suas próprias legislações nacionais, pois elas é que deverão ser cumpridas pelos demais países que fazem parte dele.
O Protocolo estabelece expressamente a necessidade do consentimento prévio informado das comunidades indígenas e locais para o acesso a conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos de que sejam detentoras, assim como a obrigação de repartir os benefícios derivados da utilização de tais conhecimentos com as referidas comunidades. Em relação aos recursos genéticos detidos por comunidades indígenas e locais, estabelece a obrigação de repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização de tais recursos com as comunidades envolvidas. Entretanto, afirma que tal obrigação (de repartir benefícios com comunidades detentoras de recursos genéticos) só se aplica nos países em que a lei nacional reconhece este direito a tais comunidades,como é o caso do Brasil.

Protocolo estabeleceu obrigações legais para provedores e usuários

Uma das principais razões para que os países megadiversos participassem das negociações do Protocolo de Nagoya foi a preocupação de que a biopirataria e a apropriação indevida dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais não seriam combatidos de forma eficaz sem o estabelecimento de obrigações legais e vinculantes tanto para países provedores como para países usuários de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Ou seja, não basta que os países provedores (ricos em biodiversidade) desenvolvam as suas leis nacionais, se não houver mecanismos de controle também nos países usuários. Depois que os recursos e conhecimentos tradicionais deixam o seu país de origem é fundamental o controle e a fiscalização de sua utilização nos países usuários (onde tais recursos serão utilizados para pesquisa e desenvolvimento).
Assim, o Protocolo de Nagoya estabelece que não apenas países megadiversos (como Brasil, India, etc) devem adotar leis nacionais de acesso e repartição de benefícios, mas também os países usuários (como França, Alemanha, Japão, etc) precisam de medidas para assegurar que a pesquisa, o desenvolvimento e a utilização de recursos genéticos dentro de seus territórios respeitem as leis dos países onde foram acessados. O Protocolo determina que os países devem estabelecer normas claras e transparentes em suas legislações nacionais, assim como providenciar a emissão de uma autorização de acesso (ou seu equivalente) como prova de que houve o consentimento prévio informado da parte provedora do acesso ao recurso genético e/ou conhecimento tradicional associado. Esta autorização se transformará em um certificado internacionalmente reconhecido de cumprimento de tais legislações nacionais. Os países (partes do Protocolo) deverão ainda designar um ou mais pontos de controle em seus territórios, onde tal certificado internacionalmente reconhecido deverá ser apresentado, para fins de comprovação da origem lícita dos recursos.
Agronegócio falou mais alto
O Brasil teve um papel fundamental nas negociações do Protocolo de Nagoya, e como país megadiverso seria de seu interesse direto participar (com direito a voto) da primeira reunião dos países signatários, onde serão definidas questões-chave para a sua implementação. O lobby do agronegócio no Congresso, entretanto, falou mais alto.
Para o agronegócio, a exclusão da soja do sistema multilateral de acesso e repartição de benefícios do Tratado Internacional (da FAO) sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura criará dificuldades para que as instituições brasileiras acessem recursos genéticos da soja (originária da China) para fins de pesquisa e melhoramento genético. Como já se disse acima, o argumento não têm qualquer fundamento legal, já que as condições para o acesso aos recursos genéticos da soja serão determinadas pela legislação chinesa, e não pelo Protocolo de Nagoya. Ao ratificar o Protocolo de Nagoya, o Brasil estaria apenas se comprometendo a respeitar a legislação da China, que – independentemente da assinatura ou não do Protocolo pelo Brasil – poderá editar normas nacionais sobre o acesso aos seus recursos fitogenéticos de soja.
Assinando ou não o Protocolo, o Brasil não poderá violar a soberania da China sobre os seus recursos naturais e fazer coleta de recursos genéticos da soja no território chinês, sem a prévia autorização do Estado chinês. Além disto, é evidente que o Protocolo de Nagoya não tem efeito retroativo, e suas normas só serão aplicadas a partir da sua entrada em vigor. Assim, as variedades melhoradas de soja atualmente utilizadas pelo agronegócio não serão afetadas pelo Protocolo de Nagoya, ao contrário do que afirma.
Ademais, sabe-se que o melhoramento genético da soja desenvolvido por instituições brasileiras se baseia principalmente no acesso a recursos genéticos da soja que já estão disponíveis nas coleções ex situ (bancos de germoplasma) mantidas por instituições brasileiras, e não na coleta de recursos genéticos da soja em condições in situ. Por outro lado, ao deixar de ratificar o Protocolo de Nagoya, o Brasil revela não apenas uma grande incoerência em seus posicionamentos internacionais – pois trabalhou ativamente pela aprovação do Protocolo, e depois não o ratificou internamente – como também perde oportunidades importantes de auferir benefícios (monetários e não monetários) pela exploração do seu rico e diversificado patrimônio biológico e genético.
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