Em uma década o movimento indígena passou da expectativa por mudança à inviabilidade do diálogo
Cristiano Navarro – Brasil de Fato – Compartilhar
A
história brasileira se repetiu em sua então mais importante efeméride.
Ao relembrar a data dos 500 anos da invasão portuguesa às terras onde
mais tarde seriam reconhecidas como Brasil, o governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso mandou construir réplicas de Caravelas e
organizou uma grande festa convidando políticos, religiosos, militares e
puxa-sacos para comemorar a trágica colonização européia.
Mais sobre o assunto:
Em resposta, indígenas de todo Brasil, militantes sem-terra,
quilombolas, estudantes, sindicalistas e parlamentares da oposição se
dirigiram em marcha para participar do convescote mesmo sem convite.
No caminho da marcha de Santa Cruz de Cabrália até Porto Seguro, onde
se realizavam as comemorações, os “penetras” foram interceptados pela
Polícia Militar da Bahia com bombas, helicópteros, gás lacrimogêneo,
cachorros e balas de borracha.
As imagens da batalha que terminou com militantes feridos e presos
evocavam a idéia de que dali em diante seriam outros 500, especialmente
para o movimento indígena, que participou mais massivamente.
Assim, a chegada de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da
República fez crescer o sentimento de mudança. Mas não foi bem assim.
Apoiados em números que mostram a redução da demarcação de terras, o
aumento dos casos de violência praticados pelo Estado contra as
comunidades e a redução orçamentária para regularização fundiária dos
territórios, o movimento indígena e seus apoiadores observam os dez anos
de governo Lula e Dilma Rousseff como sendo de profundo retrocesso.
“Retrocedemos muito neste período. Se antes lutávamos pelo
cumprimento dos nossos direitos, hoje lutamos para não perder esses
direitos reconhecidos na Constituição”, lamenta Sônia Guajajara,
coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (Coiab).
Em média, os governos dos presidentes Lula e Dilma homologaram menos
terras, em número e extensão, do que os antecessores José Sarney,
Fernando Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Na avaliação dos defensores dos direitos indígenas, a razão para este
retrocesso está na opção de modelo desenvolvimentista para o campo e
para as florestas adotado pelos governos nesta última década. “Pela
origem do governo ligado aos movimentos sociais, o movimento indígena
criou muita expectativa, mas ele fez uma aliança com os latifundiários e
as mineradoras, deixando os nossos interesses de lado”, lembra Rildo
Kaingang, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Mais grave do que o não reconhecimento dos territórios foi a
utilização do decreto 1775/96 como instrumento redutor de terras
indígenas. A partir de sua edição, várias terras sofreram redução
durante o governo FHC. Embora durante a campanha o presidente Lula
houvesse prometido a intenção de revogar o decreto, não apenas o manteve
inalterado como também o utilizou para reduzir terras, a exemplo da
exclusão de 230 mil hectares da terra indígena Baú, do povo Kayapó no
estado do Pará, em 2004.
No congresso
O fortalecimento político e econômico dos setores ligados ao
agronegócio e a exploração de energia e minérios, se traduziu em pressão
não só sobre o poder executivo, mas também sobre o legislativo e o
judiciário.
Assim, não só as terras deixaram de ser reconhecidas pelo Estado como
também as leis que asseguram este direito às populações indígenas
passaram a ser ameaçadas.
As Propostas de Emenda à Constituição (PEC) 38, de autoria do senador
Mozarildo Cavalcanti do PTB de Roraima, e 215 sob responsabilidade do
deputado Osmar Serraglio do PMDB do Paraná, colocam o Congresso como um
dos responsáveis pelo reconhecimento das terras indígenas.
No caso da PEC 38, além de submeter as demarcações de terras
indígenas à aprovação do Senado, a proposta também estipula que as
demarcações ou unidades de conservação ambiental não excedam 30% do
território dos estados. Ou seja, alguns estados, especialmente os do
Norte, teriam de rever as áreas já reconhecidas.
“O ataque direto aos povos indígenas se concretiza no avanço destas
PEC´s. A bancada ruralista não se contenta com as pressões no Executivo e
no Judiciário. Eles próprios querem decidir se uma terra é ou não
indígena, se uma terra é ou não quilombola, ou se uma terra é ou não
Reserva Ambiental”, avalia Buzatto.
Em meio às pressões pelas mudanças na Constituição, a governabilidade
se põe em favor dos ruralistas. “Hoje fica complicado contar com os
deputados do PT que tradicionalmente defenderam os direitos indígenas”,
crítica Rildo Kaingang.
Surdez
Uma das principais reclamações do movimento indígena durante este
período é falta de ouvidos do Executivo. Após muita cobrança por mais
diálogo, o governo criou em março de 2006 a Comissão Nacional de
Política Indigenista (CNPI). Composta por representantes do governo,
representantes do movimento indígena e indigenista, a comissão foi
pensada para acompanhar a tramitação de projetos de lei e propor
diretrizes para a política indigenista do governo federal.
Seis anos após sua criação, inúmeras são as críticas a este canal de
interlocução. Para Sônia Guajajara, a surdez do Palácio do Planalto
impossibilita o entendimento entre as partes. “Com o tempo percebemos
que estes espaços só serviam para legitimar as políticas do governo.
Porque o governo pensava seus projetos em cima de nossos direitos e
nossas terras e os tocava sem nos consultar. As coisas sempre vêm
prontas do Executivo, como a Portaria 303 e a usina de Belo Monte. Este
procedimento veio a interromper qualquer possibilidade de diálogo”,
sintetiza.
A portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) citada pela
representante da Coiab é a grande dor de cabeça do movimento indígena.
Entre outras determinações que ferem os direitos indígenas, a
portaria afirma que as terras indígenas podem ser ocupadas por militares,
malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais, sem consulta
aos povos; autoriza a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas;
relativiza o direito dos povos indígenas sobre o usufruto exclusivo das
riquezas naturais existentes em suas terras; e cria problemas para a
revisão de limites de terras indígenas demarcadas.
“O governo não tem uma agenda de diálogo com o movimento indígena. As
discussões que não interessaram ao governo são bloqueadas na CNPI
atendendo sempre a interesses de mineradoras e do agronegócio”, ressalta
Rildo Kaingang.
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