Jornal GGN - Uma carta aberta endereçada à
presidente Dilma Rousseff, que começou a circular nesta segunda-feira
(3) na internet, responsabiliza a ministra da Casa Civil, Gleisi
Hoffmann, pelo aumento das tensões entre os povos indígenas e os
produtores rurais no Mato Grosso do Sul.
A carta acusa o governo federal de desqualificar, por meio da
Casa Civil, os estudos antropológicos desenvolvidos pela Fundação
Nacional do Índio (Funai) que servem de base aos processos
administrativos para efetivar as demarcações de terras indígenas, o que
gera insegurança jurídica para os povos indígenas.
Essa referência remete às declarações de Hoffmann, durante uma
audiência pública no Congresso no dia 8 de maio, na qual afirmou que os
processos de demarcação de terras indígenas serão modificados e que a
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e os ministérios
da Agricultura e Desenvolvimento Agrário contribuirão com os estudos
realizados pela Funai.
Entre os signatários iniciais da carta estão o jurista Dalmo
Dallari, membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São
Paulo, e personalidades ligadas à defesa de direitos humanos. Segundo os
signatários, trata-se de uma tentativa de desvalorização da Funai que
não era vista de forma tão direta desde o governo militar. Para eles, as
normas atuais de demarcação de terras indígenas já permitem o
contraditório em todas as fases do processo.
Leia abaixo a Carta aberta à presidenta Dilma Rousseff publicada pelo site Viomundo
Carta à presidenta Dilma Rousseff
A atitude do governo federal de desqualificar, através da Casa Civil,
os estudos antropológicos desenvolvidos pela FUNAI e que servem de base
aos processos administrativos para efetivar as demarcações de terras
indígenas, gerou uma insegurança jurídica para os interesses dos povos
indígenas no Brasil.
A decisão da Casa Civil da Presidência da República apresentada aos
representantes do agronegócio e parlamentares do Mato Grosso do Sul, em
reunião na semana passada em Brasília, de que a Embrapa, Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério do Desenvolvimento
Agrário, “avaliarão e darão contribuições” aos estudos antropológicos
realizados pela FUNAI, repete a ação do último governo militar ao
instituir o famigerado “grupão” do MIRAD, capitaneado pelo general
Venturini, para “disciplinar” a FUNAI e “avaliar” as demandas indígenas.
O caminho para uma demarcação de terra indígena hoje é complexo e
apesar do Decreto 1.775/96 (da lavra do então Ministro Nelson Jobim)
facultar o contraditório em todas as fases do processo administrativo,
este processo acaba indo parar na justiça a partir da simples nomeação,
pela FUNAI, do grupo técnico encarregado de identificar uma terra
indígena. E a judicialização é cheia de percalços e artimanhas
jurídicas, medidas liminares a serviço do impedimento, chegando a
absurdos como, por exemplo, a Reclamação 8070 (relativa
a terra indígena Raposa Serra do Sol), que ocupou tempo e trabalho de
juízes. Mecanismos de protelação judicial que empurram a solução dos
conflitos por décadas afrontando a obrigação constitucional da União de
concluir as demarcações até cinco anos após a promulgação da
Constituição de 1988.
O processo das terras terenas, onde acaba de ser assassinado pela
Polícia Federal o índio Oziel Gabriel de 35 anos, chegou ao STF depois
de 13 anos de tramitação e ao alcançar tão alta instância do judiciário
brasileiro, com aprovação em plenário, onde analisou-se nos autos as
provas de cada lado envolvido juntadas em todos estes anos de tribunais,
retorna à Justiça do Mato Grosso do Sul, para novas perícias e faz-se
um looping para não resolver o problema. Será que começa do zero?
A proposta da Ministra Gleisi Hoffmann introduz uma nova rota de fuga
para criação de contraditórios jurídicos. É mais um mecanismo que
favorece a geração de novos impedimentos jurídicos por parte do
agronegócio, proporcionando que a ação de demarcação de terras, continue
circulando nas instâncias da justiça. Agora, também com questionamentos
embasados em contra-laudos e opiniões de setores do próprio estado e
cujos interesses são distintos dos interesses indígenas, representados
constitucionalmente pela FUNAI, através de laudos antropológicos
aprovados pelo Ministério da Justiça para as questões de demarcação de
suas terras.
A medida atinge os estudos já aprovados pelo Ministério da Justiça,
aqueles que aguardam homologação e os em curso e abre também
possibilidades de questionamento na justiça de terras já demarcadas,
promovendo uma insegurança jurídica, que evidentemente é sentida por
todos os povos indígenas envolvidos em disputas territoriais e setores
da sociedade que acompanham e atuam neste problema.
Com tal medida fica evidente a responsabilidade da Ministra Gleisi
Hoffmann pela radicalização da tensão no Mato Grosso do Sul e que atinge
também outros povos de outros estados. O governo erra ao escolher lidar
com o problema pelo caminho da protelação e do desmonte constitucional
das funções da FUNAI, priorizando aspectos de desenvolvimento econômico e
eleitorais frente aos direitos indígenas. Atenta aos direitos humanos e
gera mais tensão no conflito indígena brasileiro.
No Mato Grosso do Sul a não solução da demarcação das terras
indígenas é uma das várias guerras de baixa intensidade que vivemos em
nosso país. São centenas de milhares de pessoas atingidas e a mudança de
rito de tramitação da demarcação de terras indígenas, abrindo à
consulta e apreciação os laudos antropológicos produzidos pela FUNAI
para setores antagônicos à demarcação, contrariamente o que pensa a Casa
Civil, só trará mais resistência indígena e mais conflitos.
Estes povos vivem em conflito permanente com o desenvolvimento de
nossa sociedade há muitas décadas, em 1908 uma área de hum milhão de
hectares é arrendada para uma empresa de mate, como se lá não existissem
índios, 1955 houve uma CPI para apurar a apropriação ilegal de suas
terras por grandes figuras da política mato-grossense, em 1965 um IPM é
instaurado para apurar o roubo de terras indígenas, em 1968 o Relatório Figueiredo,
recentemente localizado, aponta inúmeras violências e esbulhos de suas
terras e renda, documentos que jogam luz sobre conflitos que se arrastam
por décadas, causando sofrimento e dor em uma das maiores populações
indígenas do Brasil.
Num país em que engatinhamos no direito de acesso à informação
pública, cuja lei foi aprovada junto com a que criou a Comissão Nacional
da Verdade, onde muitos documentos continuam escondidos, fora de
catalogação institucional e portanto do acesso público, a hipótese de
que terras demarcadas não possam mais ser objeto de ampliação é atitude
antagônica ao momento em que vive a sociedade brasileira de busca por
verdade e memória, justiça, reparação e não-repetição.
A justiça de transição, que reclamamos aos mortos e desaparecidos
políticos, aos atingidos por torturas, aos perseguidos pela ditadura de
64, também alcança os povos indígenas brasileiros. Em sua grande maioria
foram perseguidos, sofreram atentados, assassinatos, chacinas,
massacres, como também sofreram torturas, prisões, desaparecimentos,
remoções forçadas, escravização e hoje tais violações são objeto de
estudo pela Comissão Nacional da Verdade.
O documento, desaparecido por 45 anos, contém o depoimento dado pelo
Chefe da Inspetoria Regional do Serviço de Proteção do Índio de Campo
Grande ao procurador Jader de Figueiredo Correia, presidente da Comissão
de Investigação do Ministério do Interior, onde aponta nomes de
governadores, senadores, deputados federais e estaduais, juízes e outras
pessoas que se apossaram de forma ilegal de terras indígenas no antigo
estado do Mato Grosso.
A questão indígena dará o tamanho da régua que apontará a medida da
evolução democrática de nossa sociedade, que está entre reconhecer os
erros cometidos pelo estado, mudar condutas, reparar direitos destes
povos e desenvolver mecanismos de não-repetição ou seguir o rumo da
protelação judicial e os retrocessos em direitos humanos com o retorno
de assassinatos, demonstração de e uso indevido de força e censura.
No passado muitos crimes foram cometidos em nome do desenvolvimento e
da lei de segurança nacional, hoje tais práticas se escondem atrás de
um discurso sobre a necessidade de “governabilidade” e de um “governo em
disputa”, porém na prática os crimes continuam os mesmos, mudamos os
atores e não avançamos em mudarmos estas condutas do estado brasileiro,
gerando mecanismos de respeito aos cidadãos e garantias de seus
direitos.
Assinam:
Anivaldo Padilha – membro do Konoinia, Presença Ecumênica e Serviço
Dalmo Dallari – jurista e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo
Gilberto Azanha – antropólogo e coordenador do Centro de Trabalho Indigenista
Marcelo Zelic – vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de SP
Roberto Monte – membro do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte
Fonte
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