Para quem trafega pelo trecho da rodovia estadual MS-386 que liga as cidades sul-mato-grossenses de Amambaí e Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, é impossível não notar os barracos onde Mariluce Alves vive com os cinco filhos e sete adultos. No calor amplificado pelas folhas de zinco e pela lona plástica, o pai de Mariluce, José Alves, 71 anos, repousa a perna, atrofiada por um acidente, deitado em uma rede. Das crianças em idade escolar, duas não têm documentos.
Embora sofram com a situação precária, a família Guarani Kaiowá vive nos limites de uma área indígena devidamente reconhecida pelo Estado. Resignado, o aposentado afirma que, apesar do risco de criar as crianças próximo à movimentada rodovia por onde transitam os caminhões carregados de soja e cana-de-acúcar, aquele é o único pedaço de terra disponível para sua família, já que a aldeia está lotada. Vivendo na região há mais de uma década, Mariluce e o pai não cogitam se mudar para longe da comunidade e pedem a atenção das autoridades.
Entre os relatos ouvidos pelos integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados durante os dois dias em que percorreram a região a partir da cidade de Dourados, no sul do estado, a situação da família Alves representa o que os deputados - a exemplo de entidades ligadas à causa indígena e de especialistas - classificam como “descaso” com que o Estado brasileiro trata a questão.
“Precisamos da presença do Estado aqui em Mato Grosso do Sul. Sem isso, aqueles que se sentem donos da terra e das pessoas acabam por impor sua própria lei”, afirmou à Agência Brasil a deputada Erika Kokay (PT-DF), destacando a urgência de o país reconhecer a gravidade da violência a que a população indígena no estado está submetida.
Segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), 250 indígenas foram mortos em Mato Grosso do Sul entre 2003 e 2010. Embora muitas das mortes sejam resultado de crimes comuns, como brigas entre os próprios moradores de uma comunidade, a maioria está ligada à luta pela terra que índios e fazendeiros travam há décadas.
“É um ataque brutal. O país não pode permitir que dezenas de indígenas sejam assassinados e continuar a crer que está em uma democracia”, comentou a parlamentar. “Temos que buscar instrumentos para acelerar a demarcação de terras indígenas e resolver o problema fundiário, sem o que, nós não vamos conseguir resolver o conflito. Enquanto isso, temos que assegurar a vida das pessoas que lutam para voltar para suas próprias terras. Precisamos impedir a impunidade e aumentar a estrutura dos órgãos do Estado aqui em Mato Grosso do Sul. Fortalecer a Funai [Fundação Nacional do Índio]. E também a Polícia Federal, cuja atual estrutura é insuficiente para responder à demanda e às condições de tensionamento”, completou Érica Kokay.
Para o presidente da Frente Parlamentar Pelos Povos Indígenas da Câmara dos Deputados, Padre Ton (PT-RO), a solução do problema não é simples e exige, além de mudanças nas leis, maior diálogo entre o Congresso Nacional e os poderes Executivos e Legislativo sobre o tema.
“Constatamos que os índios estão sofrendo um genocídio quase igual ao dos judeus durante a 2ª Guerra Mundial. Vimos a miséria, o confinamento, a situação de fome; ouvimos os relatos sobre as ameaças e desaparecimento de pessoas, inclusive de crianças. Colhemos muitas sugestões e notamos que é necessária a participação do governo federal para resolvermos o problema. E que será necessária a união do Poder Judiciário, Legislativo e Executivo”, disse o deputado.
As sugestões e as considerações dos deputados constarão do relatório que os parlamentares irão apresentar à comissão, ao presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS), à Presidência da República e a outras instâncias do governo, como o Ministério da Justiça (ao qual a PF e a Funai estão subordinadas) e à Secretaria Especial de Direitos Humanos. “Nosso papel é denunciar as agressões aos povos que são os legítimos donos de nossas terras”, disse Padre Ton.
Em 2009, a Agência Brasil já havia publicado uma série de matérias sobre os conflitos fundiários na região. O especial Duas realidades sobre o mesmo chão mostra as contradições em uma área onde indígenas em condições precárias vivem ao lado de latifúndios prósperos.
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