Cabe ressaltar aqui que os cinco Kaingang presos em Faxinalzinho
ocupam posições importantes em suas comunidades. Deoclides de Paula é
cacique, Nelson Reco de Oliveira é vice-cacique, Celinho de Oliveira é
filho do kujã, líder
religioso da comunidade, Daniel Rodrigues Fortes é agente de saúde e
Romildo de Paula é uma das lideranças do povo, além de ser primo do
cacique. Desse modo, é claro que, ao prender estes indígenas,
desestrutura-se a organização social da comunidade.
O
inquérito está repleto de irregularidades e, ao invés de focar em
questões básicas, como de quem eram as armas utilizadas e os motivos que
levaram ao conflito, parte da premissa inicial de que “os índios se
reúnem em bando ou quadrilha para cometer crime” e que formam uma
organização criminosa, onde os dissidentes saem das reservas demarcadas
para disputarem terras com pequenos agricultores, que seriam usadas para
futuros arrendamentos.
Abusos e falta de provas
Sem
ter nenhuma prova cabal de que aquelas eram as pessoas que haviam
praticado os delitos, já que não há nenhuma testemunha que tenha
presenciado as mortes ocorridas, a Polícia Federal invadiu e prendeu os
indígenas em uma reunião promovida por integrantes da prefeitura de
Faxinalzinho, do governo do Rio Grande do Sul e do governo federal para
dialogar sobre os conflitos entre indígenas e agricultores e o processo
de demarcação da terra já reconhecida pelo órgão federal
como tradicionalmente indígena.
De
acordo com o relato feito pelos indígenas aos seus advogados de defesa,
as prisões foram realizadas de forma truculenta e irregular, sendo que
os mandados de prisão temporária não foram apresentados no ato de
detenção de sete indígenas Kaingang, que puderam tomar conhecimento do
documento apenas horas mais tarde, em Passo Fundo. Chegou-se ao ponto de
dois indígenas terem sido liberados, neste município, em função de
absoluta falta de elementos que justificassem suas prisões.
Um
dos aspectos que chama bastante atenção é o de que, além dos
depoimentos dos próprios indígenas presos, a comunidade de Kandoya,
desde a prisão, afirma categoricamente que nenhum dos cinco Kaingang
participou do bloqueio da estrada onde os agricultores morreram. Em
pronunciamento, eles garantem que o cacique Deoclides estava em sua
casa, com a família e outros membros da comunidade. Ele, inclusive, foi
quem, informado do clima de tensão na área, chamou a Polícia Militar
antes mesmo dos conflitos ocorrerem. Celinho de Oliveira estava com seu
pai, mãe e esposa no município de Nonoai, a cerca de 25 km do local onde
o conflito ocorreu. Ele dirigiu o veículo utilizado pela família que
fez compras em vários estabelecimentos comerciais neste município.
Nelson de Oliveira também estava em sua casa, com a família, no momento
do conflito. Cumprindo suas obrigações de agente de saúde, Daniel
Rodrigues Fortes estava fazendo visita domiciliar na própria comunidade.
E, por último, Romildo de Paula não esteve no bloqueio onde ocorreu o
conflito.
Talvez
a explicação para estas prisões aleatórias esteja na espantosa admissão
do próprio delegado da polícia federal, Mário Vieira, feita aos juízes
de primeira instância, de que pode haver falhas na representação contra
os cinco Kaingang, ao reconhecer que “a identificação de índios é muito
difícil”, porque “são parecidos”.
Além
de demonstrar desconhecer a organização social indígena, o delegado
Vieira tem apresentado uma conduta inadequada e parcial. Ele dificultou
o acesso e o acompanhamento dos advogados dos Kaingang ao inquérito
policial e a outros procedimentos durante a investigação, como as
oitivas dos indígenas realizadas no dia 14 de maio na Superintendência
Regional da Polícia Federal do Rio Grande do Sul (SR/DPF/RS). Neste
caso, os advogados deveriam ter sido comunicados com antecedência, mas o
delegado informou que as oitivas não seriam realizadas no dia proposto.
Uma manobra que, se não tivesse sido revertida, poderia resultar em
prejuízo para os indígenas detidos. O fato foi denunciado ao delegado da
Polícia Federal, Cesar Leandro Hubner, de plantão na SR/DPF/RS, naquele
mesmo dia. Além disso, o delegado também se manifestou de forma
inapropriada na imprensa, outorgando a si o poder de julgar quando
afirmou publicamente, sem quaisquer evidências sólidas baseadas em uma
cuidadosa investigação, a culpa dos Kaingang pela prática de crime
hediondo, informando que estes ficarão presos por um período de 30 a 50
anos. Devido a estes fatos, Vieira e membros de sua equipe são objetos de denúncia encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF).
O que é relevante está fora do foco
De
acordo com os advogados dos indígenas, não há, de fato, indícios de
autoria e materialidade relacionados aos cinco Kaingang presos, já que
nenhuma das testemunhas, até agora, afirma ter presenciado a morte dos
agricultores; alguns depoimentos terem sido feitos por amigos das
vítimas e apresentarem contradições evidentes; e os testemunhos dos
policiais que, inclusive, apontaram nomes de indígenas que teriam
cometido os crimes, serem bastante frágeis, já que eles não estavam no
local do conflito no momento, chegando muito tempo depois do ocorrido.
Também não há prova de que as armas utilizadas eram dos indígenas.
Estes, ao contrário, afirmam categoricamente que não portavam armas de
fogo. Fica a questão: como estas armas, de uso restrito, apareceram no
conflito?
Cabe
observar que inicialmente foi a Polícia Civil que instaurou o inquérito
policial para a apuração dos fatos, sendo que a chefia de polícia
determinou que a apuração fosse repassada para a Polícia Federal. Ou
seja, a investigação foi realizada de forma indireta.
“A
partir de tudo o que analisamos deste processo, consideramos que não há
motivo para que seja mantida a prisão temporária dos cinco Kaingang.
Desse modo, será dada entrada em um pedido de habeas corpus para a soltura dos indígenas”, afirma Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Terra, a questão de fundo
A
espera de 12 anos para obter o reconhecimento final da Terra Indígena
Kandóia e o total descaso do governo federal no sentido de finalizar
este processo é o pano de fundo do conflito ocorrido em Faxinalzinho.
Muito antes deste processo recente, o governo do Rio Grande do Sul havia
reconhecido esta terra in
dígena
Kaingang, originalmente comandada pelo cacique Votouro, a leste do Rio
Passo Fundo, em 1918, com 31 mil hectares. Deste total, após inúmeras
distribuições de terras em projetos de colonização e invasões de
fazendeiros, o relatório de identificação e limitação da Terra Indígena
Votouro/Kandóia, da Fundação Nacional do Índio (Funai), define que a
área é de apenas 5.977 hectares. Destes, 3.100 hectares foram demarcados
como Terra Indígena Votouro. Faltando demarcar, portanto, 2.877
hectares da Terra Indígena Kandóia.
Após
a publicação no Diário Oficial da União em 7 de dezembro de 2009, o
relatório foi encaminhado ao Ministério da Justiça, que tinha um prazo
de 30 dias para dar um encaminhamento ao processo. No entanto, ele
continua paralisado em alguma gaveta, à espera da assinatura da Portaria
Declaratória pelo ministro José Eduardo Cardozo.
Ao
invés de cumprir suas obrigações constitucionais e de modo a não
frustrar os interesses do agronegócio na região, o governo federal
insiste em negociar os direitos indígenas em mesas de diálogo, que não
tem amparo no procedimento administrativo da demarcação de terras
indígenas.
Promessas e nada mais
Após
bastante pressão dos Kaingang, e com a promessa de dar prosseguimento à
demarcação, foi realizada uma reunião no dia 19 de março no Ministério
da Justiça, em Brasília. Neste dia, foi agendada uma reunião para o dia 5
de abril ou 12 de abril. No entanto, o ministro Cardozo não apareceu
nem nesta e nem nas outras três reuniões agendadas no mês de abril com o
povo Kaingang, em uma cruel manifestação de total desrespeito e
descompromisso em resolver os problemas latentes.
Em nota pública, divulgada no dia 29 de abril, o Conselho
Indigenista Missionário - Regional Sul, o Conselho de Missão entre os
Povos Indígenas (Comin) e a Frente Nacional em Defesa dos Territórios
Quilombolas/RS afirmam “Responsabilizamos
o governo pelas violências em função de sua omissão e negligência, uma
vez que as autoridades eram sabedoras da situação de conflito e nada
fizeram, a não ser protelar suas decisões”.
Para
as lideranças indígenas, a verdadeira raiz do conflito que vitimou os
dois agricultores é justamente o fato de o ministro estar enrolando o
povo e não concluir efetivamente a demarcação, o que causa insegurança e
aumento da tensão na região. Segundo Valério de Oliveira, liderança do
povo Kaingang da Aldeia Kandóia, “todos os caciques estão preocupados
com a situação no Rio Grande do Sul, onde crianças estão sofrendo
embaixo das lonas... mas o ministro não tem nem vergonha de não ter
demarcado nem um dedo, nem um palmo de terra aqui. Até agora não
aconteceu nada...”.
Também
cabe lembrar que a violência em relação aos conflitos agrários tem sido
estimulada por membros do parlamento brasileiro. Em discursos
realizados em Vicente Dutra, a apenas 123 km de Faxinalzinho, em
dezembro de 2013, os deputados federais Alceu Moreira (PMDB/RS) e Luis
Carlos Heinze (PP/RS), durante audiência pública financiada com recursos
públicos, incitam os agricultores contra as populações indígenas e
quilombolas. O fato ganhou grande repercussão nacional e resultou em
queixa crime, por parte de várias organizações da sociedade civil, que
tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).