Perda de territórios tradicionais, transferência forçada e exploração
de mão-de-obra foram alguns dos casos de violência sofridos pelos povos
indígenas durante a ditadura militar. "Nossa história é longa, triste e
cheia de sangue, lágrimas e sofrimento", contou o antigo cacique Ofaié,
Ataíde Francisco Rodrigues, durante audiência pública promovida ontem
(26) pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
"Hoje somos
compostos por Ofaié, Kaiowá, Terena e não-indigenas, somos o restante de
uma etnia que no final do século XIX éramos duas mil pessoas e hoje
somos apenas 8 falantes da língua Ofaié", diz ele.
"Eu paro e
reflito o que aconteceu no passado foi um massacre, um verdadeiro
extermínio, onde um boi teve mais valor que a vida de um índio, que a
vida de um ofaié", relatou José Gomes, atual cacique da etnia. No
segundo dia da audiência na cidade de Dourados (MS), José Gomes disse
que seu povo foi declarado extinto nos anos 1970 e no final da década
perdeu seu último pedaço de terra tradicional. Segundo ele, os Ofaié
foram forçados a conviverem com outros povos depois que a terra em que
ocupavam foi entregue pela Funai a pecuaristas.
Após serem
expulsos da ilha em que viviam, tomada pelo Exército em 1972 e arrendada
para pecuaristas, os índios Guató se espalharam por vários municípios
próximos a Corumbá (MS). "Os Guató que ali viviam foram expulsos pelo
gado, pois não tínhamos costume de criar animais, mas de ter pequenas
roças", lembrou o indígena Zaqueu, de acordo com a assessoria de
comunicação da CNV.
Justino Francisco Samuel foi explorado por uma
usina de açúcar e álcool nos anos 1960 e 1970, junto com 40 terenas
recrutados para trabalhar na empresa. Segundo seu relato, os terenas
foram perseguidos por fazendeiros e autoridades, incomodados com as suas
expedições tradicionais de caça e extrativismo.
Os depoimentos
revelam a participação de funcionários do extinto Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) em violações de direitos humanos contra os povos. A
audiência também ouviu a coordenadora regional da Funai em Campo Grande,
Ana Beatriz Lisboa. "Eles sabem que no passado o governo não tinha esse
respeito com a questão cultural, a questão tradicional, a própria forma
de vida dos povos indígenas. Como o SPI era órgão do governo que fazia
esse papel, é natural que fizesse a mesma atuação equivocada de todo
governo", disse, conforme registro de estudantes da Universidade Federal
do Mato Grosso do Sul (UFMS) em página criada para acompanhar a
audiência.
À tarde, os participantes da audiência pública fizeram
uma roda de conversa na Escola Indígena Tengatuí. Genésio Farias foi
apresentado como o primeiro professor da Terra Indígena Cachoeirinha, e
sua fala na língua original foi traduzida simultaneamente. Segundo ele,
muitas mortes e acidentes envolvendo os índios, como a reintegração de
posse de uma fazenda, não tiveram uma resposta efetiva do Estado.
"Meu
povo vem sofrendo há muito tempo, muito antes desse período da
ditadura. Quando começou a se formar fazendas ao redor das aldeias,
começou a sofrer muito mais, trabalhando nessas fazendas de campos de
colonos". Genésio conta que um acidente de trabalho e um incêndio em um
ônibus que transportava estudantes causaram mortes e nenhuma família foi
indenizada.
No primeiro dia de audiência, o índio guarani
Bonifácio Reginaldo Duarte contou o processo de trabalho forçado e
espancamento pelo qual passaram índios transformados em prisioneiros.
Estes depoimentos foram documentados e ajudarão a compor o relatório
final da CNV. Eles poderão servir como base para possíveis pedidos de
indenização coletiva. Esse e outros tipos de ações compensatórias não
são papel da comissão.
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