A questão indígena, em vez de ser equacionada na perspectiva de um problema social que atenderia os que são vítimas de um processo histórico, está sendo encaminhada em termos propriamente ideológicos, tornando inviável qualquer solução. Os conflitos só podem, assim, se multiplicar, com indígenas na pobreza, produtores rurais na mais completa insegurança jurídica, reservas ambientais e assentamentos da reforma agrária sendo também ameaçados.
Caso particularmente emblemático é o de Barra Velha, no sul da Bahia, onde um trabalho de identificação e demarcação de terras indígenas, realizado pela Funai com forte apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e ONGs nacionais e internacionais, está conflagrando a região. Aqui não se trata do caso apresentado ideologicamente como usual entre "indígenas destituídos de terras e o agronegócio", estigmatizado, então, por isso. Não, não é isso! A Funai, contrariando o acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) relativo ao caso da Raposa-Serra do Sol, está empreendendo um trabalho de ampliação de terras indígenas, o que foi explicitamente vedado. Ademais, essa ampliação está atingindo o Parque Nacional de Monte Pascoal, o que, ainda na mesma decisão, foi proibido. Além disso, produtores rurais, com títulos de propriedade e cadeia dominial anteriores à Constituição de 1988, estão sendo severamente atingidos.Não esqueçamos que, ainda segundo o STF, o ano de 1988 foi considerado como linha divisória no que diz respeito à ocupação efetiva de terras para poderem ser consideradas indígenas. Há também assentamentos da reforma agrária estabelecidos na região, alguns com mais de dez anos, cujos membros se recusam a abandonar as suas terras. Colocam-se aqui questões importantes no que concerne ao respeito ao Estado de Direito, que deve ser, antes de tudo, preservado. A Advocacia-Geral da União, na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, da Consultoria-Geral da União, em parecer da advogada da União Sávia Maria Leite Rodrigues Gonçalves, foi instada a se manifestar pelos conflitos daí decorrentes entre órgãos públicos - Funai, Incra, Ibama, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Sua conclusão foi bastante enfática ao estabelecer que "não há condições jurídicas de prosseguimento dos estudos para a revisão, com ampliação, da TI (terra indígena) Barra Velha, devendo ser mantido o seu contorno decorrente de prévia e pretérita composição entre o então IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) e a Funai".
Muito claramente o parecer conclui que a "Funai, com o suporte de sua Procuradoria Federal Especializada e da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, deverá inovar na adoção das medidas gerenciais já aprovadas pela Presidência da República e encaminhadas pelo Exmo. Sr. Advogado-Geral da União, com destaque para as atividades fins, bem assim como na adequação à nova realidade jurídica delineada pelo Supremo Tribunal Federal". Note-se a referência ao julgamento pelo STF e às suas condicionantes quando da decisão do caso Raposa-Serra do Sol. Eis a nova realidade jurídica, que não está sendo levada em conta pela Funai. Ao não fazê-lo, esse órgão apenas torna mais agudos os problemas que deveria resolver. Aliás, o mais sensato, pacificando a questão, seria a compra de terras, aí incluindo terra nua e benfeitorias, para equacionar problemas fundiários indígenas onde se fizer necessário. Direitos dos proprietários, direitos indígenas, direitos dos assentados da reforma agrária e o direito ambiental seriam, todos, preservados. Ao não enveredar por essa via, criam-se conflitos e tensões infindáveis, com processos judiciais, por muitos anos, que deixam todos na insegurança jurídica e no não equacionamento de questões sociais, familiares e econômicas. O status quo do conflito não beneficia ninguém, salvo os ideólogos da discórdia, com menção especial ao Cimi e a ONGs nacionais e internacionais. Nada, de fato, que interesse à sociedade brasileira. A questão de Barra Velha chegou a tal grau de acirramento que alianças impensáveis em outros contextos se tornaram realidade. Em evento no final de agosto no município de Itamaraju, num auditório lotado com mais de 300 pessoas, sendo em torno de 270 provenientes dos assentamentos da reforma agrária e usando bonés e camisetas do MST, foi feita uma defesa do direito de propriedade e do Estado de Direito. Eis a bandeira comum a todos nessa ocasião, com membros da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), ligada à CUT, do MST, da Federação da Agricultura do Estado da Bahia (Faeb) e da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) unidos contra o trabalho da Funai e as ações do Cimi e das ONGs indigenistas nacionais e internacionais. Os líderes dos assentados da reforma agrária presentes ao evento disseram em alto e bom som que lutariam até a morte e não entregariam as suas terras aos índios. Nem querem ouvir falar de remoção para outras áreas, pois a terra onde estão é sua. Reclamam, isso sim, melhores condições de trabalho, como crédito, maquinário e sementes. As oposições correntes nacionais entre "trabalhadores rurais e empreendedores rurais" não se fizeram presentes. Ao contrário, aqueles se manifestaram solidários aos produtores rurais por compartilharem, agora, os mesmos problemas e ameaças. Declararam-se firmemente partidários do direito de propriedade. Assentados, agricultores familiares, pequenos, médios e grandes, todos se consideram igualmente produtores rurais. Já passa do tempo de uma solução técnica, não ideológica, da questão indígena, assegurando a todos os brasileiros os direitos de que são portadores. O reconhecimento do Estado de Direito é a condição mesma de qualquer solução.
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