“Bom, o doutor Almeida... ele tinha parte com o diabo.” É assim que
dona Marluce do Carmo, uma senhora Tupinambá de 58 anos de idade,
introduz o coronel mais afamado da região onde se situa a aldeia Serra
do Padeiro, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, que se estende por
porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia.
Recorrendo às artes ocultas, conta dona Marluce, “doutor” Almeida fez
com que uma ponte sobre o rio de Una se construísse sozinha – ela tem
nítida diante de si a imagem pavorosa que lhe foi transmitida pelos
antepassados, de guindastes movendo-se sem a mão humana, noite adentro.
Referido pelos indígenas como o “dono de Una”, Manoel Pereira Almeida
foi grande proprietário rural e um dos principais responsáveis pela
fixação de não-índios no sul e oeste da Terra Indígena. Entre 1919 e
1937, esteve à frente da administração de Una – exceto por um breve
intervalo, devido à Revolução de 1930 –, mantendo influência política no
município até a década de 1960. Morreu, diz-se, quando um inimigo
político determinou o corte de um pau-ferro, árvore que se erguia no
centro da cidade e na qual sua vida fora “colocada”, a seu pedido, por
um curandeiro.
“Olha, essa beira de rio aqui sempre foi nossa, dos nossos
antepassados, nosso tataravô, dos nossos antepassados”, conta dona
Marluce, diante de sua casa, junto ao rio de Una. “Eu nasci e me criei
aqui. Esse rio aqui é o rio que lavou minhas fraldas e de todos esses
que estão aí.” À beira do mesmo rio, ergue-se ainda hoje o opulento
casarão de Almeida. “Eu conheci gente ligada ao filho desse doutor
Almeida. A casa em que ele morava... ninguém não podia nem chegar,
porque morava o demônio dentro lá também – da casa dele, entendeu?
Então, o homem era esquisito. Além de ter se coligado com os demais,
para mandar acabar com os nossos antepassados também. Tios meus morreram
de tanto apanhar. Era ele, esse doutor Almeida, e outro coronel de
Ilhéus também, que eram ligados às matanças com a gente, com nossos
antepassados. É por isso que sempre eu falo: até hoje ainda existe a
maldição por lá.”
Almeida não é exceção. Nas falas dos Tupinambá, coronéis do tempo do
cacau e outros pretensos proprietários de terras comumente aparecem como
figuras brutais, associadas a pactos diabólicos e a assombrações. No
hospital de Buerarema (hoje desativado), instalado na casa onde viveu um
poderoso local, Eurico Susart de Carvalho, ruídos fantasmagóricos são
ouvidos à noite. Dona Marluce recorda: “Eurico Suzart também tinha parte
com o coisa-ruim. Um dia, o vaqueiro dele de confiança, quando chegou
na manga, viu que um boi preto engoliu esse Eurico e cagou. Aí Eurico
disse para ele não contar para ninguém, que era um segredo, era para ele
morrer com aquilo. Era coisa do pacto [diabólico]. Quando ele morreu,
quem pegou no caixão diz que lá dentro não tinha corpo: era um toro de
bananeira”.
No marco da brutal expropriação sofrida pelos indígenas, narrativas
como essas se multiplicaram. Invadido, o território tupinambá
recobriu-se de pedras de tocaia (atrás das quais se postavam matadores
de índios), covas na mata (onde foram parar alguns dos indígenas que se
recusaram a entregar seus sítios) e peixes grandes comedores de gente
(que se fartavam quando corpos eram lançados nas represas a mando dos
coronéis). Porém, nas últimas décadas – após um longo período de
resistência mais ou menos silenciosa, em que a história tupinambá morava
nas memórias dos velhos –, esse povo vêm se dedicando a curar a terra
da sombra dos invasores.
Em 2004, após intensa pressão, o Estado brasileiro iniciou o processo
de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. No mesmo ano, os
indígenas iniciaram a recuperação efetiva de seu território, retomando
fazendas em posse de não índios, limpando as nascentes, replantando
roças, reocupando velhas casas abandonadas e adentrando novamente as
moradas dos encantados – entidades não humanas que, conforme a
cosmologia tupinambá, são os verdadeiros donos da terra. Só na aldeia
Serra do Padeiro, cerca de 70 fazendas foram retomadas desde então e, a
despeito de violentas ações de reintegração de posse, os indígenas
continuam em posse de todas.
Dona Marluce participa das retomadas desde o início. “Nós não somos
ladrões: nós estamos lutando pelo que é nosso. Que a terra é nossa,
sempre foi nossa. Os nossos pais que morreram, lutando para ela ser
nossa, e não conseguiram... Mas nós, que somos os netos, os bisnetos, os
tataranetos... agora chegou a nossa vez!”
***
Transcorridos mais de dez anos, o processo de demarcação da Terra
Indígena Tupinambá de Olivença ainda não foi concluído e os indígenas
vêm tendo seus direitos sistematicamente violados. Para que mais pessoas
conheçam o caso tupinambá e se somem na pressão pela demarcação, a
documentarista Fernanda Ligabue e eu, junto aos Tupinambá, estamos
realizando um documentário de curta-metragem, reunindo depoimentos de
indígenas da aldeia Serra do Padeiro, entre os quais, dona Marluce. O
filme, produzido pela Repórter Brasil, está em fase de edição. Para finalizá-lo, criamos uma campanha de financiamento coletivo [link: http://catarse.me/pt/tupinamba] e convidamos todos que puderem a colaborar.
VEJA UM BREVE DEPOIMENTO DE DONA MARLUCE
Dona Marluce -
Documentário "O RETORNO DA TERRA" -
Campanha Catarse from O retorno da terra on
Vimeo.
http://vimeo.com/117214017
* Mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília -
UnB (“O retorno da terra: As retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do
Padeiro, sul da Bahia”). Doutoranda em Antropologia Social junto ao
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).
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