No momento em que a
Constituição Federal comemora 25 anos de existência, se ouve o
mugido das vacas, o relincho dos cavalos e o trote das mulas que
invadem o plenário do Congresso Nacional e se misturam ao zumbido
estridente da moto serra. É possível sentir o bufo agressivo que
sai em jatos de ar pelas narinas de parlamentares. Essa é a voz da
bancada ruralista formada por 214 deputados e 14 senadores, que
querem anular os direitos constitucionais dos índios. Seus
"argumentos" são relinchos, bater de cascos, coices no ar
e, por isso, não conseguem convencer os brasileiros.
Nas principais
cidades do país ocorreram manifestações contra esta ofensiva do
agronegócio. Nesta semana, a Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (APIB) organizou Mobilização Nacional em defesa dos direitos
indígenas. A parte sadia do país disse um rotundo "não"
ao pacote de dezenas de Projetos de Emenda Constitucional (PEC) ou
Projetos de Lei Complementar (PLP) que tramitam no Congresso
apresentados pela bancada ruralista e pela bancada da mineração.
Esses parlamentares
querem exterminar as culturas indígenas não por serem gratuitamente
malvados, perversos e cruéis, mas porque pretendem abocanhar as
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Para ampliar a oferta
de terras ao agronegócio, lançam ofensiva destinada a mudar até
cláusulas pétreas da Constituição. Exibem despudoradamente seus
planos em discursos e através da mídia como os artigos na Folha
de São Paulo da senadora Kátia Abreu (PSD-TO vixe, vixe), a
muuuusa da bancada ruralista e do deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS
vixe vixe).
Causa inconfessável
Quase todos os
parlamentares da bancada ruralista tiveram suas campanhas financiadas
por empresas de capital estrangeiro como Monsanto, Cargill e
Syngente, além da indústria de armas e frigorífico, conforme dados
da Transparência Brasil. Afinal, é disso que eles vivem, dessa
promiscuidade com o capital estrangeiro, sem o qual não poderiam
exportar e comprar produtos. Querem agora liberar as terras indígenas
para grandes empresas brasileiras e estrangeiras plantarem
monoculturas com agrotóxicos, construir barragens no rios e extrair
minérios para a exportação.
No entanto, os
ruralistas não podem confessar aos eleitores que seu objetivo é o
lucro, apenas o lucro, nada mais que o lucro. Inventam, então, que
estão defendendo "os interesses nacionais" e classificam
como "anti-Brasil" os que não concordam com eles. Essa é
uma velha tática, usada no século XIX, quando o agronegócio da
época acusava os que defendiam a abolição dos escravos de
representarem interesses estrangeiros. Trata-se de ganhar para uma
causa indefensável os brasileiros crédulos que amam sua Pátria. Aí
exploram o nacionalismo e apostam na desinformação.
No artigo com título
sugestivo - "Causa Inconfessável" - a senadora
Kátia Abreu tenta desqualificar os índios e seus aliados com uma
argumentação esdrúxula. Sem citar fontes, sem dizer de onde tirou
a informação, ela jura que "são mais de 100 mil ONGs, a
maioria estrangeira, associadas a dois organismos ligados à Igreja
Católica: o CIMI ((Conselho Indigenista Missionário) e a CPT
(Comissão Pastoral da Terra)".
E por que cargas
d'água milhares de ONGs estrangeiras defenderiam as terras
indígenas? Na maior cara de pau, ofendendo a inteligência do
leitor, a senadora Kátia Abreu, ousa dizer que elas querem destruir
a agricultura brasileira. Comete um erro vergonhoso para uma
parlamentar ao confundir nação com estado. Exibe sua ignorância
deixando no chinelo o Tiririca:
"Os
financiadores são países que competem com a agricultura brasileira
e que cobiçam nossas riquezas minerais e vegetais. São os mesmos
que, reiteradamente, defendem que essa parte do território nacional
deve ser cedida, e os brasileiros índios, transformados em nações
independentes da ONU".
Tudo nebuloso,
deseducativo, desinformativo. A senadora não dá nomes nem aos bois
nem às vacas, não diz quais são esses países, não diz quem quer
decepar os territórios indígenas do Brasil e omite que as terras
indígenas pertencem, constitucionalmente, à União e não aos
índios. A "causa" dos ruralistas é, realmente,
"inconfessável": cada vez que uma medida prejudica seus
lucros, dizem que "é ruim para o Brasil", quando favorece
"é bom para o Brasil". O Brasil é a conta bancária
deles. Sem confessar a origem dos recursos que financiam os
ruralistas, a senadora faz dos índios um tábua de tiro ao alvo:
"É do mais
alto interesse nacional - sobretudo do interesse dos próprios índios
- saber quando, de onde vêm e como são gastos os milhões de
dólares que sustentam a ação deletéria dessas organizações, que
fazem dos índios escudos humanos de uma causa inconfessável".
Cavaleira da
desesperança
"É hora de defender o Brasil" berra o deputado Luis Carlos Heinze no título de seu artigo (3/10), que reproduz o mesmo papo furado, a mesma lenga-lenga, excluindo os índios da comunhão nacional. Ataca a FUNAI - Fundação Nacional do Índio - por identificar "pretensas terras indígenas" contra os ruralistas que ele diz serem "os legítimos detentores de terras". E faz eternas juras de que está defendendo a pátria ameaçada por índios e por ONGs.
"É hora de defender o Brasil" berra o deputado Luis Carlos Heinze no título de seu artigo (3/10), que reproduz o mesmo papo furado, a mesma lenga-lenga, excluindo os índios da comunhão nacional. Ataca a FUNAI - Fundação Nacional do Índio - por identificar "pretensas terras indígenas" contra os ruralistas que ele diz serem "os legítimos detentores de terras". E faz eternas juras de que está defendendo a pátria ameaçada por índios e por ONGs.
Nunca foi tão
apropriada a conhecida frase do escritor inglês do século XVIII,
Samuel Johnson, aclimatada por Millor Fernandes, no século XX, ao
nosso contexto: "O patriotismo é o último refúgio dos
canalhas" - escreveu Johnson. "No Brasil, é o
primeiro", acrescentou Millor.
A senadora, que se
diz católica, bate na mesma tecla. Escreve que os defensores dos
direitos indígenas "exercem notória militância política, de
cunho ideológico, sob a inspiração da Teologia da Libertação, de
fundo marxista". Está zangada com a Igreja, que ela quer
defendendo os interesses dos ruralistas e não dos despossuídos, dos
injustiçados, dos espoliados. Esculhamba ainda com a
FUNAI "aparelhada por antropólogos que compartilham a
mesma ideologia".
Mas não se limita
aí a cavaleira da desesperança. De arma em riste, ataca outros
"inimigos". Ela está convencida de que "além
das ONGs e das instituições como o CIMI e a CPT, há dois órgãos
voltados para a defesa dos índios: a já citada Funai e a FUNASA,
incumbida da saúde e da ação sanitária nas tribos". Kátia é
do tempo em que ainda se dizia que índios vivem em tribos.
"Seriam as
terras destinadas à agricultura a causa do sofrimento dos
índios?" - pergunta em seu artigo. E ela mesma
responde: "Quem quiser que tire suas conclusões: os índios
brasileiros dispõem de extensão de terra de dar inveja a muitos
países". Se um país que é um país sente inveja,
imaginem os ruralistas. Por isso, a voz dela, que é a mais
estridente no Senado clama:
- Os índios não
precisam de terra e sim de assistência social.
Ela chama de
"invasão" a resistência dos índios em não permitir que
seus territórios sejam apropriados pelo agronegócio e
anuncia: "Para reagir ao avanço dessas invasões,
apresentei ao Senado projeto de lei que suspende processos
demarcatórios de terras indígenas sobre propriedades invadidas
pelos dois anos seguintes à sua desocupação".
Foi contra essas
medidas do agronegócio e contra esses argumentos preconceituosos e
retrógrados que manifestantes se insurgiram em manifestações
pacíficas realizadas em Brasília, no Rio, em Belo Horizonte e nas
principais cidades brasileiras. Em São Paulo, a manifestação
foi aberta pelos txondaro guarani e contou com a adesão de
muitos antropólogos, estudantes, professores.
As imagens da
manifestação em São Paulo foram registradas e editadas por Marcos
Wesley de Oliveira para o Instituto Socioambiental. Em plena Avenida
Paulista, ele entrevistou lideranças indígenas - Megaron
Txucarramãe (kayapó), Renato Silva (guarani), Natan Gacán
(xokleng), antropólogos - Manuela Carneiro da Cunha e Márcio Silva
(USP), Maria Elisa Ladeira (CTI), Lúcia Helena Rangel (PUC/SP), Beto
Ricardo (ISA) e os líderes quilombolas do Vale da Ribeira - Nilce
Pereira e Ditão.
- Vocês não estão
sozinhos - disse a mestranda em Antropologia, Ana Maria Antunes
Machado, se dirigindo aos Yanomami, enquanto apontava os
manifestantes da Avenida Paulista. Ela falou com bastante fluência
em língua Yanomami, pois viveu com eles, com quem trabalhou mais de
cinco anos como assessora pedagógica, antes de atuar no Observatório
de Educação Indígena coordenado pela pesquisadora Ana Gomes
(UFMG). O fato tem forte carga simbólica, por se tratar de alguém
tão brasileira quanto a Katia Abreu, mas que, para ouvir os índios
e com eles dialogar, aprendeu a língua Yanomami e foi capaz de
reverenciá-los. http://youtu.be/TwCPT17kqO8
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