Realizou-se no dia 7 de dezembro, em Campo Grande
(MS), o chamado “leilão da resistência”. O evento (que teria o objetivo
de arrecadar dinheiro para a contratação de seguranças armados -
diga-se pistoleiros - e atacar comunidades indígenas) foi promovido, com
ampla divulgação na mídia e internet, pela Associação dos Criadores de
Mato Grosso do Sul (Acrissul), Federação da Agricultura e Pecuária de
Mato Grosso do Sul (Famasul) e, além delas, contou com o apoio e
presença de parlamentares, especialmente aqueles vinculados à bancada da
agropecuária (ruralistas) do Congresso Nacional.
Os
propósitos das entidades ruralistas, de mobilizar "produtores rurais"
contra os povos indígenas que lutam pela demarcação de suas terras, bem
como seu potencial para incitar a violência direta contra estes povos,
vinham sendo denunciados há mais de um mês por organizações da sociedade civil e por lideranças indígenas.
São
tão suspeitas as razões para esta iniciativa que Kátia Abreu
(presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil
– CNA - e senadora pelo PMDB) apressou-se em afirmar que não serão
criadas milícias e nem adquiridas armas com os recursos arrecadados pelo
leilão. A defesa veemente e o uso destes termos indica que esta
possibilidade existe, posto que foi pensada e ventilada e precisou ser
rebatida. E os recorrentes eventos de violência contra os povos
indígenas, envolvendo armas de fogo e jagunços encapuzados já são, por
si só, um perigoso indício do que pode vir a ocorrer em nosso país
depois destas iniciativas com caráter público, no entanto marcadamente
criminosas.
Considerando
ser uma ação que põe em risco a segurança e a vida dos povos indígenas e
acolhendo uma ação impetrada pelo Conselho da Aty Guasu e Conselho do
Povo Terena, em 4 de dezembro de 2013, a
juíza Janete Lima Miguel, da 2ª Vara da Justiça Federal de Campo
Grande, determinou que o leilão não fosse realizado. Na decisão, ela
argumenta o que se denunciava, ou seja, que o leilão “tem
o poder de incentivar a violência (…) e colide com os princípios
constitucionais do direito à vida, à segurança e à integridade física”. E conclui ainda que “esse comportamento por parte da parte [fazendeiros]
não pode ser considerado lícito, visto que pretendem substituir o
Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os
povos indígenas”
A
4ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande (MS), depois de acionada
pelos representantes dos ruralistas, liberou (no final da noite do dia
6) a realização do tal leilão da resistência. Os indígenas recorreram
junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) e, em caráter
liminar, o desembargador Lionel Ferreira manteve o leilão desde que as
três condicionantes impostas pela Justiça Federal de Mato Grosso do Sul
fossem adotadas: 1.
O dinheiro arrecadado com o leilão será depositado numa conta judicial e
controlado pela Justiça; 2. Os leiloeiros deverão discriminar os nomes
dos arrematadores e os valores pagos; 3. A
utilização dos recursos arrecadados com o leilão só poderá ser feita
depois de a Justiça ouvir o Ministério Público Federal (MPF) e as
organizações indígenas Conselho da Aty Guasu e Conselho do Povo Terena.
O
que mais chamou atenção, no caso desse leilão criminoso foi o silêncio
absoluto do governo federal, especialmente do Ministro da Justiça, José
Eduardo Cardoso, da presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai),
Maria Augusta Assirati, da Ministra da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, Maria do Rosário, e dos integrantes da Secretaria Geral da
Presidência da República, onde estão empoleirados, além do ministro
Gilberto Carvalho, o senhor Paulo Martins Maldos, que durante décadas
acompanhou toda espécie de violações aos direitos indígenas e hoje, no
governo, silencia diante de uma iniciativa que abertamente convoca
setores da sociedade civil a unirem-se para angariar fundos específicos e
com isso combater direitos indígenas resguardados pela Constituição
Federal.
Esses
representantes do governo federal são omissos quanto ao leilão
criminoso e igualmente responsáveis por toda e qualquer prática de
violência que vier a ocorrer contra as comunidades e lideranças
indígenas. Lamentavelmente ações de violência passaram a acontecer de
forma mais intensa nas últimas semanas em Mato Grosso
do Sul, onde lideranças Terena, Guarani e Kaiowá estão sendo ameaçadas
de morte e sofrendo atentados. E, no caso do leilão dos ruralistas não
há, por parte dos integrantes do governo, como tentar justificar de que não sabiam de nada,
uma vez que o evento foi amplamente divulgado pelos meios de
comunicação e anunciado no Congresso Nacional por parlamentares que
compõem a base de sustentação do governo federal. Além disso,
jornalistas de diferentes agências de notícia informam, nas reportagens
divulgadas sobre esse absurdo leilão, que procuraram escutar instâncias
do governo, mas que, apesar de inúmeras tentativas não obtiveram
sucesso.
Este
fato se soma a tantos outros e demonstra que no governo da presidente
Dilma os “senhores do agronegócio” estão muito à vontade, dando as
cartas em um perigoso jogo no qual se busca barganhar e violar as regras
constitucionais. Ao silenciar, o governo compactua com as ofensivas dos
ruralistas contra a vida dos povos indígenas, estes que historicamente
são discriminados, perseguidos, ameaçados, vitimados por doenças e têm
suas lideranças assassinadas em emboscadas, tocaias e em ações de
setores que tomam nas mãos o que consideram ser a “justiça”.
O
governo assume, neste caso, uma atitude omissa em relação aos povos
indígenas, que mais uma vez encontram-se ameaçados. E, em relação às
terras que estão sendo identificadas como de ocupação tradicional
indígena, o governo federal tem se negado ao cumprimento de suas
atribuições de proteger e fazer respeitar os bens da União. Vale
ressaltar que o Art. 20, XI da Constituição Federal estabelece que "são
bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Assim,
além da grave omissão diante de um risco concreto de prática de crimes contra a vida dos indígenas,
as autoridades (no exercício do poder) praticam crime de improbidade,
já que é sua obrigação constitucional fazer a defesa dos bens públicos,
que precisam ser zelados, respeitados e protegidos.
E
se – nos jogos de interesses dos governantes e nos discursos
desenvolvimentistas tão propagados na atualidade – a vida das pessoas,
comunidades e povos indígenas não têm importância política, jurídica,
econômica, as terras por eles ocupadas (ou a serem ocupadas) deveriam
ser prioridade das autoridades federais uma vez que (elas - as terras)
constituem-se em importantes fontes de riquezas para o país,
especialmente pelo potencial energético, ambiental e mineral. O governo,
ao permitir que grileiros, fazendeiros e empresários explorem, depredem
e dilapidem os territórios indígenas, pactua com os crimes contra o
patrimônio público, contra a sociedade, contra o país.
Chama
igualmente atenção o fato de não ter havido, de outras instituições ou
poderes do Estado, manifestações públicas e até jurídicas contrárias ao
leilão criminoso dos ruralistas. E não se pode deixar de lembrar que os
discursos difundidos pelos meios de comunicação e redes sociais foram
proferidos pelos representantes dos setores do agronegócio e por
parlamentares da Câmara dos Deputados e Senado, bem como por deputados e
vereadores nos estados de Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná.
Apesar
dos conteúdos agressivos e que instigavam a prática de violência contra
os povos indígenas, quase não se ouviu de personalidades, inclusive
eclesiais, como do arcebispo de Campo Grande (MS), e de representantes
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos
Juízes para a Democracia (AJD), posicionamentos de repúdio ou
contestação ao leilão e seus proponentes e incentivadores.
Foi
necessário às organizações indígenas (Conselho da Aty Guasu e Conselho
do Povo Terena) ingressarem com uma ação judicial solicitando o
cancelamento do leilão e, com isso, impor que houvesse (contra ou a
favor) uma manifestação de um dos poderes públicos, o Judiciário.
Somente depois desta ação se conseguiu, ao menos em parte, evitar que as
organizações dos ruralistas, com o aval de parlamentares e a omissão do
governo federal, pudessem livremente angariar e utilizar dinheiro deste
leilão para “segurança privada ou milícias” - o que resultaria na
intensificação das ameaças, dos ataques e, consequentemente, dos
assassinatos de indígenas em Mato Grosso
do Sul. Também, em função da mobilização indígena, se escancaram
interesses e iniciativas que violam e contrariam nossos mais caros
princípios de justiça e humanidade estabelecidos na Constituição Federal
e num conjunto de acordos e convenções internacionais dos quais o país é
signatário.
O
que está em jogo, neste caso, não é o fato de liberar ou coibir um
simples leilão promovido por corporações rurais. Está em jogo o
estabelecimento de limites para ações individuais e coletivas que
denotam uma vontade de fazer justiça com as próprias mãos. É uma luta em
torno de limites tão caros a um regime democrático e diz respeito,
também, às premissas da justiça e da dignidade humana, que não podem e
não devem se dobrar ao capitalismo e aos ditames autoritários de quem
detém o poder e o dinheiro.