Por Eliane Brum
“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”
A
declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5o
Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na
Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para
um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter
fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte
pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a
região?”. O coronel respondeu:
-
Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo
licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam
licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que
fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.
É
uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela
certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como
o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela
força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e
das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda
precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já
foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz,
o presente precisa ser iluminado com urgência.
Há
vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia
Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais
poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de
resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de
suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto
sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado
autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da
maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque
traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de
interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro
campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu
ideário. E o mantê-lo na democracia.
A
ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão
de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a
lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a
“interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote
ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu
continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os
slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem
terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto
verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e
biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa
fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade
que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma
realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime,
é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da
ditadura para a Amazônia.
É
primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse
de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a
hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única –
são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a
construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a
Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o
direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo
tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso,
com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos,
como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.
É
nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades
tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a
justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores
que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir
a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela
Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo
dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema
regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes,
causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora
na enchente histórica do rio Madeira.
É
também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura,
a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade
dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na
Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a
tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores,
independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças
representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido
usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por
grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.
E
a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa
versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes
na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não
decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre
aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como
inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.
Poderia
ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura
persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito,
convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo
tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela
iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores
de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo
espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros.
Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói
memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como
os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um
obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à
manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há
décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar
os interesses dos centros de poder.
Esta
é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas
populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra
para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a
construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de
dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece,
na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na
qual a periferia serve à matriz.
Para
muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o
de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e
de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem
sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de
campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é
também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira
agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior
bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e
alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio
pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a
desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a
Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para
engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de
sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de
“gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que
expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na
ditadura, mas também na democracia.
A
Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e
simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de
poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que
persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se
tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo
da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos
indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana
do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de
setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores
do atual governo.
Aqueles
que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais
profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar
de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de
fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de
poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos
econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou
permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na
ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a
distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é
preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer
manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de
estar no mundo.
Os
povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua
voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar
suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que
segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso
que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de
agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que
tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação
física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é
preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que
disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o
objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200
povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da
Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no
caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras
cobiçadas para lucros privados.
Nada
é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa
também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa
questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma
espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais
vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo
teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam,
porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal
seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das
cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e
simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada
entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de
cobiça.
Quando
alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai
dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que
“índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas
está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os
povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que
completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é
compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita
colaboração.
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