O Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
divulgou há poucos dias relatório onde recomenda a conclusão dos
procedimentos demarcatórios das terras indígenas no Mato Grosso do Sul.
Com base nas leis vigentes, envolvendo a Constituição e tratados
internacionais, o conselho também faz propostas complementares para
auxiliar na resolução dos conflitos fundiários, responsáveis pela
violência contra os indígenas, rechaçando teses como o marco temporal.
Minucioso, o trabalho, iniciado no 1º semestre de 2011, foi executado
pela Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Grosso do Sul, que
realizou reuniões, seminários e visitas às comunidades.
“Com uma
Constituição em plena vigência (...) não se pode conceber que haja
resistência contra o cumprimento da Lei Maior”, afirma trecho do
relatório. Os trabalhos da comissão demonstram que “mesmo após
históricas decisões do Supremo Tribunal Federal reafirmando o direito à
demarcação com o estabelecimento de critérios para o procedimento,
inclusive impondo várias limitações ao próprio
direito reconhecido, os atos de violência não cessaram, ao contrário
foram acirrados ao ponto de ceifar vidas, o que não pode ser admitido”.
Durante a atuação da comissão, assassinatos contra indígenas, ameaças e
atentados não deixaram de ocorrer, caso de Oziel Terena (foto), durante
ação de reintegração de posse, e Nísio Guarani e Kaiowá, em ataque de
pistoleiros.
Sobre as violências sofridas pelas comunidades indígenas, o relatório atesta: “Se é correto afirmar que
aqueles que, de boa-fé ocupam as terras consideradas indígenas têm o
direito de defender seus direitos através das medidas judiciais que lhes
são postas à disposição pelo próprio ordenamento jurídico (...) não é
menos verdadeiro afirmar que não poderão fazê-lo por intermédio da
intimidação ou da violência”. O documento expressa que é um direito dos
povos indígenas “verem suas terras demarcadas”, com
respaldo em legislação tanto no país, com a Constituição Federal,
Decreto 1775, quanto em tratados internacionais dos quais o Brasil é
signatário, caso da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT).
O CNJ
lembra que na promulgação da Constituição foi estipulado um prazo de
cinco para que as terras indígenas fossem demarcadas. “Passados mais de
vinte anos da promulgação da Carta da República, a determinação do
Constituinte ainda não foi cumprida, e quando são sinalizadas algumas
providências concretas visando tornar efetiva a norma constitucional,
alguns setores da sociedade e indígenas deflagram um movimento de
confronto e de resistência que está tomando rumos bastante
preocupantes”, diz trecho do relatório. Desse modo, a questão relativa à
terra, conforme o CNJ, é o ponto fundamental dos direitos indígenas
constitucionalmente garantidos; como sobrevivência cultural e física
desses povos.
Marco temporal e judicialização
Para o
assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar
Cupsinski, o relatório mostra ainda a discordância do CNJ com a tese do
marco temporal, defendida por alguns ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF). Um trecho do documenta respalda a opinião de Cupsinski:
“O art. 231, da Constituição Federal, ao reconhecer aos indígenas o
direito originário sobre as terras que tradicionalmente habitam,
consolidou o entendimento de que essas áreas nunca deixaram de
constituir territórios indígenas, limitando-se o poder estatal à
obrigação de declarar essa condição. Deste modo, a titulação dessas
áreas, cuja tradicionalidade conferiu proteção especial, deu-se em clara
violação aos dispositivos constitucionais, ainda que sob a égide da Constituição de 1967/69, visto que o instituto do indigenato remonta ao século XVII”.
“Quero
ressaltar esse aspecto, mas sem esquecer que o CNJ foi justo na sua
análise: em caso de titulação de boa-fé, é preciso indenizar. No caso
dos pequenos agricultores, devem ser reassentados. Na verdade, é o que
defende os povos indígenas. As dificuldades são criadas por quem não
quer ver as leis de demarcação cumpridas. Optam pela
judicialização e apostam em teses como o marco temporal”, ressalta
Cupsinski. No relatório do CNJ, números comprovam a estratégia dos
grupos que tentam, a todo custo, impedir a demarcação de terras
indígenas.
Cerca de
140 ações judiciais envolvendo as demarcações de terras indígenas no
Mato Grosso do Sul tramitam em alguma instância do Poder Judiciário. A
maioria se encontra na 1ª Instância da Justiça Federal: 52 em Ponta
Porã, 23 em Naviraí, 7 em Campo Grande, além de 3 no Tribunal Regional
Federal (TRF) de Dourados, 15 no TRF de Naviraí e 11 no TRF de Ponta
Porã. Outras 11 ações tramitam no STF, em Brasília. Desse total, 18
ações foram movidas pela Federação de Agricultura e Pecuária do Mato
Grosso do Sul (Famasul).
De um modo
geral, tais ações judiciais fazem o efeito desejado por quem não quer a
demarcação de terras indígenas: 14 terras entre homologadas,
identificadas, declaradas, delimitadas ou registradas no patrimônio da
União estão com os procedimentos ou portarias declaratórias suspensas
por efeito dessas ações. “Além da paralisação da demanda territorial,
vemos as terras já com estudos e encaminhadas invalidadas por decisões
judiciais que em alguns casos nem chegamos a ser ouvidos”, relata
Lindomar Terena. A Terra Indígena Cachoeirinha, onde vive Lindomar, é
uma das que sofre com sequências
de ações judiciais. “O resultado é que semanas atrás atiraram contra um
grupo de patrícios. Um foi atingido e precisou ser hospitalizado. Quem
atirou é quem entra com essas ações na Justiça”, afirma o Terena.
Dez terras
indígenas aguardam por providências da Fundação Nacional do Índio
(Funai), conforme o relatório do CNJ. Sobre essa grande quantidade de
processos judiciais, o CNJ faz um alerta no relatório: “Não se pode
esquecer que os conflitos sobre as terras indígenas, que desaguam no
Poder Judiciário são conflitos histórica, social e culturalmente
diferenciados dos demais conflitos sociais. De fato, não há como perder
de vista que a terra – terra-mãe – não é apenas um meio de produção, de
geração de riquezas a qualquer custo. Ao contrário, é um lugar da
memória coletiva do povo, da sua história, do seu lazer e trabalho, onde
celebra os seus rituais de vida e morte, especialmente de vida”.
Para a
comissão, os indígenas do Mato Grosso do Sul foram desapossados das
terras a eles destinadas de forma exclusiva: “O ‘justo título’ tantas
vezes invocados pelos atuais ocupantes dessas terras não serve para
descaracterizar a área como terra indígena de ocupação tradicional.
Porém, e ao mesmo tempo, ao Estado incumbe o dever de reparar
integralmente os atuais proprietários rurais. A indigitada titulação,
como é de conhecimento público e notório, foi precedida de um processo
de colonização do território da então Província de Mato Grosso,
especialmente na região sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul”. O
relatório explica que esse processo colonizador aconteceu por incentivos
do próprio governo para que brasileiros ocupassem centenas de hectares
naquele estado ocupados por aldeias indígenas. Amontoados em reservas,
cansaram de viver longe das terras dos ancestrais para iniciar um longo
caminho de volta a elas.
“Para a
gente essas ações judiciais deixam de levar em conta a história, o que
aconteceu e ainda acontece com nosso povo. O governo federal é fraco
politicamente e faz as vontades de políticos, fazendeiros. Então só nos
resta retomar as terras que reivindicamos. Guarani e Kaiowá e indígena
nenhum vive longe de sua terra”, destaca Otoniel Guarani e Kaiowá.
Comissão heterogênea
A comissão
foi instituída no 1º semestre de 2011, no âmbito do Fórum de Assuntos
Fundiários do CNJ, e foi composta de forma heterogênea: Justiça Federal
do MS, integrantes de tribunais regionais federais, Ministério Público
Federal (MPF), Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana,
Advocacia-Geral da União (AGU), Fundação Nacional do Índio (Funai), dois
representantes das comunidades indígenas, dois representantes dos
proprietários rurais e dois especialistas na questão indígena. A
coordenação da Comissão coube ao desembargador do Tribunal de Justiça do
Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Comitê Executivo Nacional do
Fórum de Assuntos Fundiários do CNJ, Sérgio Fernandes Martins.
O resultado
dos trabalhos da comissão, em face de sua composição, demonstra, na
opinião das lideranças indígenas, que a demarcação das terras indígenas é
a única alternativa para a resolução do conflito, como afirma o
relatório: “Não é por outra razão que o Preâmbulo da nossa Carta Cidadã
de 1988 estabeleceu como fundamento do Estado Democrático Brasileiro a
“harmonia social”, e ao qual foi atribuída a magna missão de (...)
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos”.
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