O mês de fevereiro começou especial para uma aldeia do sertão de
Pernambuco, a pouco mais de 400 quilômetros de Recife. Sete anos após
deixar a família e a rotina que levava como professor, o atikum
Josinaldo da Silva, de 35 anos, se tornou o primeiro indígena formado em
medicina pela Universidade de Brasília (UnB). O diploma era um sonho
antigo do nordestino.
"Em 2001 eu comecei a trabalhar como agente de saúde. Eu via o meu
sofrimento, o sofrimento do meu povo, e pensava que poderia fazer muito
mais. Só que eu não tinha condições de pagar o curso. Então pensei: faço
matemática, aí uso o salário de contador para pagar um curso de direito
e depois uso o salário de advogado para pagar medicina", explica.
A oportunidade, para a alegria de Silva, chegou bem antes. Cursando o
terceiro ano de matemática, ele se inscreveu para uma das duas vagas
oferecidas em medicina no vestibular indígena da UnB. A prova tinha 100
questões e foi realizada por cerca de 400 pessoas.
"Eram 50 perguntas de matemática e 50 de português. Na época eu fazia o
curso e ainda dava aula particular, então acho que isso me ajudou
bastante, me colocou em vantagem. Não fui o primeiro colocado, mas
entrei. O importante é que deixei 199 para trás, não é?", brinca.
Segundo o indígena, a vinda para o
Distrito Federal
não foi fácil. Silva abriu mão de acompanhar as primeiras descobertas
do filho, que na época tinha nove meses, e da vaga conquistada como
professor em um concurso público. Para subsidiar os gastos dele na
cidade, a Funai dava uma bolsa de R$ 900 - nem metade do que ele
ganharia se começasse no novo emprego.
Outros fatores que pesavam para o indígena eram a distância dos
costumes da tribo e o preconceito. “É como se você tivesse algo
alimentando sua alma e de repente isso parasse. Você tinha um laço,
tinha um vínculo com a comunidade, com o seu povo. Com 15 dias, tinha
pessoas quase em depressão. A gente sofreu muito, também por falta de
aceitação. O colega que entrou no curso comigo não aguentou e acabou se
suicidando.”
Em sala de aula, nem sempre a situação ficava melhor. Silva conta que
alguns colegas o procuravam e se dispunham a ajudá-lo caso ele tivesse
alguma dificuldade com as disciplinas. Ainda assim, ele nunca tinha com
quem fazer trabalhos de grupo ou provas em dupla.
"Eu me sentia como elemento estranho que estava no meio dos
intelectuais, talvez até num local indevido", lembra. "Eu não conhecia
ninguém, fora que tinha pouca noção do curso. A sociedade se diz
incluente, mas continua excludente. É um caso raro um índio entrar na
universidade e conseguir chegar ao final com êxito. Tem turmas que não
nos incorporam mesmo. Teve até caso de colega em outras instituições
sendo barrado por colega no Enade com o argumento de que iam diminuir a
nota da turma."
Com a graduação concluída, Silva espera atualmente pelo resultado da
prova de residência em Saúde da Família, feita no Hospital Regional de
Planaltina. O indígena também deve começar a trabalhar em uma unidade de
saúde no interior de Goiás. Depois de concluir o curso, ele volta para a
aldeia.
"Volto para prestar serviço ao meu povo, que me indicou para vir para
cá. Sabe, algumas vezes eu tive muito medo de que não desse certo e
pensei em desistir, especialmente quando me sentia bastante sozinho. Mas
eu acreditei que tudo que eu estava sacrificando valeria a pena, porque
acho que vou poder contribuir bastante para a minha aldeia."
O diretor da Faculdade de Medicina da UnB, Paulo Cesar de Jesus, diz
que a instituição prestou todo suporte possível ao indígena,
especialmente nos primeiros semestres do curso, quando ele chegou a
reprovar em algumas disciplinas. O professor afirma que a conquista de
Silva é motivo de comemoração para toda a comunidade acadêmica.
"A gente fica muito satisfeito porque isso faz parte de um complemento
de uma dívida histórica com a comunidade indígena. Um dos papéis da
universidade pública é fazer a inclusão social. Agora, fica a
expectativa de que ele realmente volte para a comunidade dele e a ajude,
já que ele, melhor que qualquer um, conhece as tradições e a cultura do
povo dele."
Atualmente a UnB tem 53 estudantes indígenas. De acordo com a
universidade, 90 alunos ingressaram na instituição por meio de um
convênio firmado com a Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2004.
Convênio
Atualmente o vestibular indígena oferece dez vagas por semestre nos
cursos de agronomia, ciências biológicas (licenciatura/bacharelado),
medicina, ciências sociais, engenharia florestal, nutrição e enfermagem.
As provas acontecem em cidades do Acre, Amapá, Amazonas e Roraima.
Olhar a lista das cidades onde acontecem a seleção foi um fator
essencial para eu decidir prestar UnB", diz Silva. "A gente não precisa
se deslocar por grandes distâncias e gastar muito sem saber se vai dar
certo, é a universidade que vem para onde a gente está."
Para ajudar na adaptação dos estudantes, a UnB oferece aulas de
biologia, química, física, matemática e língua portuguesa. Diretor da
Faculdade de Medicina, Paulo César de Jesus diz que a medida foi adotada
diante da dificuldade que os indígenas tinham em áreas básicas.
"Alguns reprovaram nas disciplinas iniciais muitas vezes, então o
decanato e as faculdades fizeram cursos de nivelamento. Também havia
monitores para os acompanhar e ajudar a fazer trabalhos, além de
acompanhamento direto, no caso da medicina, da coordenadora e da
pedagoga do curso", afirma.
Paralelamente, a Funai dá uma bolsa aos índigenas para que eles possam
arcar com os custos de hospedagem, alimentação, transporte e apoio
escolar. Segundo o órgão, ano passado foram investidos R$ 429.235,96
mensais para 1.069 indígenas.
A Funai também mantém parcerias semelhantes com as universidades
federais de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Pará, Paraná, Roraima,
Santa Catarina, São Carlos e da Grande Dourados. Também há acordos com
as estaduais de Feira de Santana, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com
os institutos federais do Espírito Santo e de Minas Gerais, além da PUC
de São Paulo, Universidade Católica Dom Bosco, Anhanguera, Centro
Universitário da Grande Dourados e Universidade do Oeste de Santa
Catarina.
De acordo com a instituição, o primeiro convênio foi firmado em 2000,
com a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), para oferecer
licenciatura intercultural para os povos indígenas. Já o mais recente
foi estabelecido com o Instituto Federal do Espírito Santo no ano
passado.
Atikuns
Um levantamento feito pela Secretaria Especial de Saúde Indígena,
subordinada ao Ministério da Saúde, apontou a existência de 7.924
membros da tribo. A aldeia fica na Serra do Umã, no sertão pernambucano,
e tem um raio de aproximadamente 20 quilômetros. A base da economia dos
indígenas é a agricultura. Eles moram em casas de alvenaria e falam
português.
“A nossa língua se perdeu há cerca de 150 anos. Acho que tem só umas 50
expressões ainda mais conhecidas”, explica Silva. “Por exemplo: sarapó,
que é cobra grande e comestível, jiboia.”
Inicialmente nômades, os atikuns já passaram por Alagoas, Ceará,
Sergipe e vários pontos de Pernambuco até chegar à serra. A vida no
local, de acordo com o indígena, é “bastante dificultosa”.
“Chove apenas três meses do ano, quando chove. É bastante difícil”,
diz. “Você mora na aldeia, mas a aldeia não tem tudo. Você precisa ir à
cidade para comprar, vender ou trocar coisas que você não consegue
produzir.”